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O DESAFIO DA (RE)CONEXÃO COM O 'SELF' [MANUAL DE BOLSO - Versão 2024]

...VAZIO? DESÂNIMO? SOLIDÃO? FALTA DE FOCO? ANGÚSTIA?...
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Muitas destas queixas são queixas típicas do estado de crise da subjetividade pessoal. E o que quer isto dizer? Bem, comumente, este estado de crise decorre da falta de investimento na nossa "vida interior". Quando esta falta de investimento leva ao afastamento e eventual desconexão com o nosso 'Self', debilitando-o, é gerado intenso mal-estar. Neste caso, a solução está na libertação do 'Eu reprimido', ou seja, no processo de individuação emancipação pessoal.

Por outro lado, pessoas que estão nos estágios iniciais do processo de emancipação pessoal, e que percebem quão isoladas estão em relação à maioria, poderão também experimentar mal-estar sob a forma destas queixas: acontece que o que faz mover o mundo não as faz mover mais. Aos perceberem de forma mais lúcida a crise da subjetividade atual, sentem-se alienadas da cultura ao seu redor. Neste caso, a solução está na resistência às tentações da repressão, e na persistência da emancipação.

Trataremos de perceber o que cada um destes conceitos significa, que principais fatores estão envolvidos na sua origem e manutenção, e de que formas podemos resolver as dificuldades que daqui emergem. 

* 

Capítulo 1: A SUBJETIVIDADE EM CRISE: O 'EU REPRIMIDO'

1. A 'Moral de Rebanho' e a Repressão da Individualidade

Não raro, ao longo da minha prática clínica, percebo-me expressa ou indeclaradamente a reforçar o aforismo atribuído a Krishnamurti sobre “não [ser] sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. E a 'moral de rebanho' da sociedade atual é, sem dúvida, responsável por uma vida anestesiada, doentia e fraca, por oposição à 'vida do ethos', onde cada ser humano define o caminho que quer seguir em função da sua individualidade.

A 'moral de rebanho' é um conceito da filosofia de Nietzsche, que representa um dos seus grandes ataques críticos à democracia moderna, e que se traduz num comportamento submisso e irrefletido sobre os valores dominantes da civilização, que tendemos a incorporar passivamente na nossa rotina, e que se tornam potenciais obstáculos ao nosso desenvolvimento pessoal e coletivo. 

Na 'moral de rebanho', a tónica da socialização é posta na uniformização do indivíduo com a coletividade, e que não há incentivo à unicidade das nossas peculiaridades subjetivas. Aquilo que nos define e nos diferencia entra em diluição: é seguir o rebanho, caber na forma geral, não destoar. O que haja de espontâneo é limado, o que haja de original é invalidado, e os atos psíquicos originais são substituídos por sentimentos, pensamentos e desejos hegemónicos. Percebe-se então o crescente enfraquecimento da identidade ontológica ("EU REAL") da pessoa. A par desta sua despersonalização, direções para uma nova identidade substituta ("EU IDEAL") começam a ser ditadas. 

2. O Capitalismo e a Repressão da Subjetividade 

Instrumentalizados/as pelo capitalismo, a nossa nova identidade substituta é a de uma 'máquina' de produção. O prazer, o ócio e a fantasia são obstáculos à produtividade e, consequentemente, devem ser reprimidos e controlados. A mesma coisa sucede com as emoções e os afetos, porque o raciocínio concreto, orientado para os factos, ganha predomínio sobre o raciocínio subjetivo.

3. O Défice Emocional e Simbólico como Sintoma

Entramos então em défice de elaboração emocional (capacidade de identificar, expressar e regular as nossas emoções), e em défice de função simbólica (capacidade de representarmos mentalmente outras possibilidades de vida). O tempo devemos rentabilizá-lo para a aquisição de aptidões e competências. Não há espaço para o erro, para a limitação, para a imperfeição, para a vulnerabilidade. A máquina "deve" apagar o humano-em-nós, porque atrapalha a produção.

4. A Aversão ao Sofrimento

Impõe-se um ideal antidepressivo de crescimento: uma 'tirania da felicidade' que dita que a vida deve ser uma experiência de contínuo prazer, de conquistas e de sucesso e uma profunda aversão à vulnerabilidade ('quem é inteligente ou capaz, não sofre: só os fracos cedem'). Da droga psicofarmacológica à droga ilegal, o caminho já está aberto por esta falsa ideia de que o bem-estar é estar livre da subjetividade. O próprio caminho de cura que a terapia oferece é, por isso mesmo, um assunto que desperta menos interesse nas pessoas: “se me posso anestesiar, se posso automatizar as minhas respostas, se posso estar menos deprimido/a ou ansioso/a através dos fármacos, por que hei-de embrenhar-me na complexidade da minha subjetividade e falar em terapia?”. 

Cumprir a expectativa de assumir o "Eu Ideal" converte-se num dever. E o dever (do "Eu Ideal")  sobrepõe-se ao desejo (do "Eu Real"). Aos poucos, a vida interior é secundarizada e esquecida. 

5. O Auto-policiamento e a Dependência da Validação Externa 

Esta mensagem coloquei-a, central, à cabeceira da minha mesa de apoio no consultório: “Conheci muitas pessoas que não gostam de si mesmas e tentam superar isso persuadindo primeiro os outros a pensarem bem delas. Feito isto, começam a pensar bem de si próprias. Mas essa é uma falsa solução, trata-se de uma submissão à autoridade dos outros. A sua tarefa é aceitar-se a si próprias, não encontrar formas de obter a minha aceitação” (Irvin Yalom).

De todas as ilusões, uma das mais acutilantes para o coração é a de que o Outro nos preenche. O Outro não pode fazer aquilo que nós não fazemos por nós próprios/as. Findas contas, não poderemos nunca sentir o que o/a outro/a sente. O que sentimos é o nosso sentimento em nós. E é esse sentimento que nos completa, ou esvazia. Depender da valorização e aprovação externas é uma forma de boicotar o nosso desenvolvimento e a todos os seus potenciais de realização pessoal. Não, não se trata de ser egoísta, mas de assumir a responsabilidade por si mesmo/a

Privados/as de incentivo à expressão do que nos define, ficamos sem recursos para nos defendermos, e entramos numa crise de assertividade, ou de afirmação pessoal. A validação externa - que é uma necessidade normal e saudável, transversal a todos os seres humanos - começa a perverter-se para uma dependência. O nosso valor passa a ser regulado por parâmetros externos a nós.

ENTENDA UM POUCO MAIS SOBRE A VALIDAÇÃO EXTERNA. CONTINUE OUTRAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/entender-para-superar-os-desafios-do.html

O ideal antidepressivo de crescimento é responsável por levar-nos a ter medo de qualquer emoção negativa, e a confundir desejos com exigências ou necessidades. Por exemplo, quando o “eu quero ser feliz" se converte no “eu tenho de ser feliz". Exemplos de crenças deste género, não adaptativas, podem encontrar-se verbalizadas da seguinte forma, ainda que nem sempre conscientemente: 

...“Eu devo ser perfeito/a em tudo o que faço ou não vão gostar de mim”, “Se eu não vencer, serei um falhado/a e todos os outros me vão rejeitar”, “Devo obter a aprovação de todos”, “O fracasso é intolerável e inaceitável” e “Não posso demonstrar fraqueza/vulnerabilidade ou achar-me-ão um/a fraco/a”... 

Como fracassar esta tarefa é condenar-nos a fortes emoções negativas (as mais das vezes percebidas como intoleráveis), tendemos não só a controlar todos os nossos movimentos (policiamento interno e externo), sujeitamos a nossa forma de ser e de estar a uma dinâmica de constante restrição, mas também a evitar ao máximo o desconforto provocado por essas mesmas emoções. Como vivemos numa sociedade onde é proibido ser-se vulnerável, procuramos não ter dificuldades

Atendendo a que os problemas e as dificuldades da vida são incontornáveis, tentar não ter problemas e dificuldades é a primeira receita para se criar um problema grave. Muitos problemas são criados e mantidos pelo esforço, tantas vezes impulsivo, de lhes encontrar solução imediata e totalmente eficaz. E quando não conseguimos, assume-se que “se ainda não resolvi o problema é porque ainda não me esforcei o suficiente”, e com isto, acabamos por perpetuar um ciclo vicioso, um 'mais-do-mesmo' que só vai piorando, à medida que desanimamos e perdemos esperança. É nesta ótica que muitas dificuldades ansiosas são passíveis de serem definidas como impasses

6. O Ruído das Experiências Externas ofuscando o Silêncio Interior

Concentramo-nos então no sucesso, através de conquistas externas: trabalho, status, riqueza, beleza, etc., e angustiamo-nos ao acolher a perceção ansiosa de que os outros se estão a divertir, a viver uma vida melhor ou envolvidos em experiências mais excitantes do que as nossas - o que chamamos de Fear Of Missing Out (ou FOMO). SAIBA MAIS SOBRE O 'FEAR OF MISSING OUT'. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2023/04/fear-of-missing-out-fomo-everything.html

A agenda transborda de ocupações voltadas para estes objetivos, e mesmo que consigamos incluir algum 'tempo de lazer' ou 'tempo de descanso', não somos incentivados/as a procurar um 'tempo para o silêncio interior': esse tempo que nos permite entrar em contacto conosco mesmos/as, reativar a vida interior, entendermos a nossa subjetividade psíquica, percebermos bem as nossas necessidades, os nossos desejos, as nossas coordenadas existenciais reais - vivermos a 'vida ethos', fora da 'moral de rebanho' que nos anula. Voltaremos a este ponto mais tarde.

7. A Crise da Espiritualidade

 "Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde".

[dubiamente atribuída a Jim Brown]

Apropriando as palavras de Jean Cocteau: "Temos de ser clientes ou mercadoria". Esta disposição provoca um desequilíbrio entre as necessidades materiais e as necessidades espirituais, levando a um défice na relação com a nossa espiritualidade e a uma saturação materialista. Vêm à mente as palavras de Tyler Durden “Trabalhamos em empregos que não gostamos, para comprar um monte de coisa que não precisamos”. Voltaremos a este ponto mais tarde.

8. A Crise Afetiva

Entretanto, os problemas na relação com o Outro instalam-se no formato de um desinvestimento afetivo/passividade afetiva. É provável que, se o/a leitor/a se relacionou nos últimos tempos, tenha passado por algumas destas experiências...

- estranheza diante do Outro;
- banalização do afeto positivo e do amor;
- quebra na procura, início e manutenção de diálogo;
- experiências de curving e ghosting;
- quebra no espírito de solidariedade e de tolerância ativa;
- dificuldade em aceitar e fruir da diferença;
- dificuldade em definir e respeitar limites;
- iniciar ou propor planos, conversas e demonstrações de afeto físicos e/ou verbais;
- dificuldade em ser-se espontâneo/a;
- isolamento;
- estabelecimento de relações negativas (ex.: relações tóxicas, de dependência)... 

9. A Banalização do Amor e o Império do Apego (Já Ninguém Ama Devagar)

Quando a gente lhes fala de um novo amigo, eles nunca se informam do essencial. Não perguntam nunca: "Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que coleciona borboletas?". Perguntam antes: "Que idade tem? Quantos irmãos tem? Quanto pesa? Quanto ganha o pai dele/a?". Somente então é que julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: "Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado..." elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: "Vi uma casa de seiscentos contos". Aí então elas exclamam: "Que maravilha!

[Antoine de Saint-Exupéry]

Há quase 20 anos, o sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o hoje amplamente difundido termo amor líquido para retratar o modo como nos relacionamos. Este conceito de amor é pensado a partir da lógica dos bens de consumo. A relação só é preservada enquanto trouxer satisfação e utilidade instantânea, se não, é rapidamente substituída por outra: reflexo da sociedade capitalista, que valoriza o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, resultados que não exijam esforços prolongados e receitas testadas, garantias de seguro total e devolução de dinheiro. 

No cenário de uma sociedade cada vez mais individualista, em que prevalecem a exaltação e glorificação do eu narcísico, o Outro parece cada vez mais atreito a cumprir a mera tarefa de confirmação e manutenção da nossa própria identidade. Com efeito, a maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o problema de ser amado/a, e não o problema da própria capacidade de amar. O que queremos, egoistamente, é a garantia de que somos amados/as, especiais e tratados majestaticamente, que o Outro nos descubra de forma pronta, totalmente compatível conosco, ficando com pouca paciência para negociar as diferenças e enfrentar as frustrações inerentes a esse processo - uma espécie de regresso à fase do narcisismo primário. Queremos esse 'amor' em bandeja e queremo-lo já. Isto é atuar sob influência de um funcionamento assente no Ego

O que o Ego chama de amor é possessividade e apego dependente, que podem transformar-se em ódio numa questão de segundos. A expectativa em relação a um acontecimento, que é a supervalorização do futuro por parte do Ego, transforma-se no oposto - abatimento ou decepção - quando aquilo termina ou não satisfaz as expectativas do Ego. Sermos elogiados e reconhecidos faz-nos sentir vivos/as e felizes num dia, enquanto sermos criticados ou ignorados faz-nos sentir rejeitados/as e infelizes no dia seguinte. O prazer de uma festa animada transforma-se em ressaca e em algo desinteressante na manhã seguinte. Não existe bom sem mau, nem alto sem baixo. As emoções produzidas pelo Ego decorrem da identificação da mente com fatores externos que são, é claro, instáveis e sujeitos a mudanças a qualquer momento. Quando o Ego domina as relações interpessoais, a vida faz-se turbulenta e geradora de ansiedade.

Além disso, sendo relações superficiais no sentimento, no conhecimento, e no entendimento, elas tendem a estagnar estado de paixão (ou estado nascente de enamoramento), a maior parte das vezes enformada pelos ideais do amor romântico, ambas condições que muito estimulam a idealização das pessoas e das relações

Não raro, a necessidade de defender o Ego faz com que levantemos muralhas de proteção emocional. Ou o Ego é frágil e, naquele momento, incapaz de lidar com relações profundas que exijam entrega e abertura; ou o Ego é tão superestimado que acaba por suprimir as facetas da personalidade em prol de uma identidade performática. O primeiro precisa de uma certa estrutura e segurança para baixar o que essas guardas têm de excessivo; e o segundo de autocompaixão e independência da aprovação externa para se desarmar. É natural, prudente e até sedutor usar de algumas “máscaras” quando conhecemos alguém. Contudo, o problema dá-se quando as relações permanecem neste nível mais superficial.

Especialmente em tempos de superexposição, certos estereótipos ganham visibilidade e tornam-se “referenciais”: seja de beleza, de atratividade, de poder, de virilidade, de desejo. Uma vitrine de estilos fica à disposição de todos/as nós, às custas do esforço que cada manequim incorra para manter uma “identidade blindada contra a rejeição”; por seu turno, a motivação principal de uma relação, que é a procura por uma ligação emocional verdadeira com o outro, acaba por ser negligenciada.

Todo o amor verdadeiro profundo é um sacrifício. Sacrificamos as nossas possibilidades, ou melhor, a ilusão das nossas possibilidades. Quando não há sacrifício, as nossas ilusões impedirão o surgimento do sentimento profundo e responsável, mas com isso também somos privados da possibilidade de experienciar do amor verdadeiro” 

[Jung]

Isto seria atuar sob influência de um funcionamento assente no Self. Não é que não ansiemos por conexões reais e encontros significativos: claro que sim; a questão é que não nos permitimos tempo para nos conhecermos bem a nós próprios/as e para conhecermos bem os outros. Fazem-se demasiadas cedências: de tempo, de energia, de vulnerabilidade; arrisca-se demasiado: podemos sofrer, e ninguém quer sofrer. É demasiado ameaçador para a nossa liberdade pessoal. Queremos algo que magicamente venha encaixar na cuba da nossa idealização. Por outro lado, há demasiadas ofertas à escolha no mercado da globalização, o que estimula a procura incessante de algo melhor.  

Mas se a precariedade dos vínculos inspira o desejo de intensificá-los, por outro lado, a insegurança inspira o desejo de os deixar soltos. Este é o nosso dilema. O aumento da liberdade na escolha do/a parceiro/a traz a reboque todas as inseguranças da fugaz efemeridade: há um sombrio sentimento de precariedade, em que existe sempre a possibilidade de se escolher facilmente outra pessoa, pelo que ninguém é insubstituível

"Quem ama dói, quem não ama adoece"

[Freud]

Quase 17% dos adultos no mundo ocidental relata ter dificuldades na intimidade com outras pessoas. Afastam-se quando as coisas começam a “ficar sérias”, mantêm as relações a um nível constantemente superficial, não são transparentes com as suas intenções, dizem não estar preparados/as para se relacionar e, ao mesmo tempo, dão a entender que poderá haver um futuro, sem deixá-lo claro – tudo formas de boicote à intimidade.

O afeto do ser humano é uma virtude preciosa, e a gestão dos seus investimentos precisa de ser feita com o máximo cuidado. Haverá quem se furte às suas delícias por temer os potenciais danos de um mau investimento; haverá quem boicote as oportunidades de demorá-lo nas relações receando ser rejeitado/a ou maltratado/a. Há-os/as para quem se torna mais fácil deprimir do que enfrentar a tristeza de uma não-reciprocidade; há-os/as para quem seja mais cómodo cair em ansiedade do que enfrentar o medo que semelhantes feridas poderão provocar

Mas sem uma ética voltada para a alteridade extraviamo-nos do nosso próprio sentido de individualidade, pelo que devemos abrir caminhos para ir ao encontro do Outro: estar onde as pessoas estão, minimamente disponíveis para aceitar a diferença. A gestão otimal dos nossos investimentos afetivos só se treina numa lógica de encontro, e nunca numa de evitamento – como qualquer outra virtude, o amor deve ser aprendido e trabalhado, caso contrário torna-se disfuncional por falta de uso. 

A dificuldade de nos entregarmos à intimidade decorre frequentemente de experiências passadas dolorosas (eventualmente traumáticas), que nos sensibilizaram para o medo da rejeição ou da perda, e para a expectativa de que nos decepcionem. Isto poderá ter eu ver com: 

(1) o fracasso dos nossos pais ou figuras cuidadoras em modelar uma intimidade saudável e respeitosa; (2) experiências de rejeição e desgosto amoroso no passado (tornando-nos hesitantes quando se trata de nos aproximarmos de alguém); 
(3) baixo sentido de autoestima – quando nos sentimos inadequados/as ou insuficientes diante dos outro num contexto em que nos é requerido sermos vistos/as – realmente vistos/as – a um nível primordial e portador da alma, a experiência será a de auto-rejeição, minando assim qualquer conexão significativa com os demais.

Não infrequentemente, é o fracasso em reconhecer estes medos pelo que eles são que leva a grandes términos relacionais. A única forma de evitá-lo é abraçar esses medos e desemaranhar o domínio que exercem sobre a nossa vida amorosa.

"Depois de algumas deceções, as pessoas tornam-se frias; o coração já não se magoa por qualquer coisa: a frieza espalha-se por todo o ser. E quando alguém chega, é como uma piscina, a água está gelada, molham-se apenas os pés. Dá para ouvir uma voz que vem do fundo dos olhos e que diz “vem, depois de entrares a água fica quente”. E pergunto-me: "quem é que tem a coragem de entrar, de romper os icebergues do coração de alguém? Quem é que tem a coragem de se molhar, de mergulhar no incerto peito friorento? Quem é que tem a coragem de amar, de sair da superfície, de cair nos braços, de aprender a nadar no mais íntimo de alguém? Quem é que tem a coragem de acreditar que depois de entrar, aquece?". O amor é mesmo para quem tem coragem, e para os corajosos do plantão, desejo que saltem para a piscina que, a priori, parece gelada; e que descubram que ela está à temperatura certa pra nos fazer ficar. Mas que entendam, que não se pode nadar por muito tempo em ambientes que não são propícios. Que esse alguém encontre o equilíbrio, reciprocidade. E que não se fique a afogar em piscinas vazias, porque todo mundo merece um amor maior do que o Atlântico

[Jaqueline Camargo]

Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson no seu ensaio 'Prudence', “a nossa segurança está na nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre os corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência. A velocidade, no entanto não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento exige pausa e descanso, recapitular os passos já dados, examinar mais de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. O mesmo se dá com o Amor.

Funcionar de modo confluente com o Self leva a que o nosso investimento afetivo seja feito desde o Amor; opostamente, funcionar sob ascendência do Ego leva a que esse investimento seja feito desde o Apego

Diferentemente do Amor, o Apego é um posicionamento que acontece como resistência à vida, como condicionalismo que nos limita o amadurecimento, que nos paralisa a responsabilização pelas escolhas que fazemos - a responsabilidade de olharmos com compreensão e aceitação para os recessos mais íntimos do nosso mundo interior; em vez de acompanhar os movimentos de evolução, de responsabilidade e de autonomia, a energia do Apego tem o movimento contrário, tentando recriar a dependência e a permanente busca de algo ou de alguém que seja o provedor de amor, de alimento, de segurança e de proteção, quando não estamos capazes de nos providenciarmos esses cuidados a nós mesmos/as. O Apego quer posse e controlo ("ela é minha", "ele é meu"). 

O desafio do processo de superação do Ego convida-nos à libertação gradual de qualquer tipo de apego ou dependência. Pede-nos autonomia, maturidade, capacidade de assumirmos o nosso caminho pessoal, confiando que temos em nós os recursos suficientes para ir navegando pela vida. Pede que identifiquemos onde é que ainda vivemos infantilmente na forma de pedir, exigir e esperar e aprendamos a ser o adulto capaz de se autosustentar sozinho/a (queremos o Outro desde a Cura, ou desde a Ferida?). Será desta autonomia que iremos então estar preparados/as para criar relacionamentos maduros e de qualidade. Relacionamentos onde o respeito pela individualidade e proposta pessoal de cada um/a é uma prioridade. Relacionamentos livres de exigências, cobranças e jogos psicológicos que mais não são do que repetições das birras infantis.

Faz-se terapia por isso. Sabermos superar as nossas tendências narcísicas primárias. Sabermos compatibilizar a nossa solidão com a dos outros, sem nela perceber uma traição rejeitante. Perceber do Amor que as nossas solidões se roçam, e que é tão-somente isso. Que não nos pertencemos, que não nos penetramos, que ninguém é de ninguém. Talvez Espanca tenha razão: “La tendresse humaine ne peut s'exprimer que par un seul geste: celui d'ouvrir et de refermer les bras”. Que o Amor possível seja tão-somente isso: uma aproximação. Os gestos no ar nunca seriam reféns da nossa presunção de controlo – não era da nossa competência assegurá-lo. É o Amor que escolhe a sua hora de chegada; se tanto, aceitamos o convite para o baile – abrimos e fechamos os braços, e dançamos: dois para cá, dois para lá... Crescer é isto: aprender a amparar-nos a nós próprios. Sermos hospitaleiros para com a nossa solidão. Vivermos dela com Amor. Talvez mesmo encontrar aí um 'novo romantismo'.

10. A Tristeza do Sexo Masturbatório

Apostando na nossa infindável capacidade de fantasiar, contando com os excessos do desejo, a sociedade pós-moderna encoraja-nos a querer mais do que já temos e a sonhar em vir a ser mais do que somos. Propõe-nos um sistema económico fundado na contínua renovação dos apetites, e um sistema social alimentado pela ânsia de encaixar na cuba de diferentes idealizações irrazoáveis que fazem qualquer um/a viver acima das suas possibilidades. Por isso mesmo, a nossa cultura não sabe inventar uma ética ou mesmo uma etiqueta do desejo enaltecido. Somos constantemente ameaçados/as pela liberdade de fantasiar e desejar o que nos é indispensável e que nos define. 

A autodeterminação beira a falta de lei, o individualismo beira o solipsismo. E a masturbação é uma metáfora deste paradoxo. Nela, o desejo e a fantasia triunfam, mas dispensam o encontro com o Outro – satisfaz sem os limites impostos pela realidade. Descobre-se que as nossas faculdades prediletas arriscam desagregar o laço social mínimo: a célula da vida amorosa.

Nestes termos, a masturbação lembra que a exaltação moderna do indivíduo ameaça comprometer qualquer projeto de sociedade. Aparecem novas maneiras de preocupar-se com a contradição entre a apologia do desejar e a necessidade de regrar o desejo para que a vida seja tolerável e a convivência social sejam possíveis. 

Em consultório, nunca ouvi queixas a respeito de uma problematização da masturbação – deixou de ser vista como doentia ou alienante (o que efetivamente não é), como o foi durante dois séculos da nossa história. Mas ouço queixas a respeito das drogas que entregam jovens e adultos a um mundo separado de fantasias, em que a realidade e a sociabilidade se perdem. Ouço queixas a respeito do exercício solitário do devaneio de crianças induzido pelos videojogos e pela contínua atividade online. E percebo que o que muda é apenas a forma das preocupações. Porque o paradoxo moderno do ‘querer’ – esse permanece ainda por resolver-se. 

Num dos seus seminários, intitulado “A Angústia”, Lacan afirma que de todas as angústias, a única que termina é o orgasmo. É um alívio que as coisas possam terminar. Na sociedade de uma ‘ejaculação afetiva precoce’, a necessidade tiranizada pelo ‘quero já’ trivializa o suado compasso de espera que a sedução implica; faz-nos esquecer que o amor vive do desejo, e o desejo da ausência que parecemos não conseguir tolerar; da ânsia que nos não permitimos sentir; da imaginação que avidamente trocamos pela imediatez do consumismo. Seguindo a metáfora masturbatória, quanto mais corremos atrás do alívio da gratificação imediata, menos sabemos lidar de forma ajustada com a ‘falta’ a que o desejo nos conduz: a falta que nos leva ao Outro

11. Solidão Por Todos os Lados   

"Eu acho que uma pessoa precisa de aprender desde infância a estar sozinha. Significa não ficar aborrecida quando se está sozinha, porque uma pessoa que se sente entediada quando está sozinha - parece-me a mim - está em perigo"

[Andrei Tarkovsky]

Solidão externa, o quanto baste”: Há-os/as, negativamente desrelacionados/as, que se queixam da inexistência de uma rede de suporte social adequada e da ausência de sentimento de companheirismo. Há-os/as que ressentem a ausência ou a perda de uma figura de vinculação íntima, romântica, familiar ou de amizade. Há-os que, positivamente desrelacionados/as, têm na capacidade de estarem sós uma força criativa, edificante e madura, que lhes permite organizar pensamentos e refletir sobre o passado e o futuro, potencializando a auto-restruturação dos seus recursos e energia. Como em tudo o que é importante na vida: um equilíbrio

Sim, as condições sociais alteraram-se face às sociedades tradicionais baseadas nas relações cara a cara e no interconhecimento. Nunca como hoje estivemos tão contactáveis, mas também nunca nos sentimos tão sozinhos/as. É uma evolução contrária à nossa natureza. Quando examinamos as nossas vidas e os nossos empreendimentos, observamos que quase todas as nossas ações e desejos estão ligados à existência de outros seres humanos. Ingerimos alimentos que outros cultivam, usamos roupas que outros fabricam, vivemos em casas que outros constroem. A maior parte do nosso conhecimento e crenças foi-nos comunicado por outras pessoas através de uma linguagem criada por outros. O indivíduo é o que ele é e tem o significado que ele não tem tanto em virtude de sua individualidade, mas sim como membro de uma grande sociedade humana, que lhe dirige a existência material e espiritual do berço até ao túmulo. Tudo em nós está preparado para que precisemos uns dos outros – precisamos de proximidade e acolhimento – e no entanto a iliteracia afetiva vai aumentando, tendo por efeito a normalização do desrelacionamento negativo. Quando nos desrelacionamos negativamente, todas as dimensões da saúde física e psicológica se ressentem, das mais diversas formas. É em contexto relacional que ganhamos vida. 

Uma vez mais, fui como uma criança que brinca ao esconde-esconde e não sabe o que mais teme ou deseja: permanecer escondida, ser descoberta” (Georges Perec)

Como ser capaz de ficarmos sós sem termos de nos encapsular? Este é o dilema de todos/as nós, desafiados/as continuamente – e por vezes até dilacerados/as – entre a necessidade de nos comunicarmos com o Outro e a necessidade ainda mais vital de conservarmos o núcleo privado do nosso ‘Self’

O funcionamento saudável exige períodos de não comunicação, de recolhimento ao mundo interno, quando precisamos de descansar de alguma adversidade, ou quando necessitamos de reorganizar o mundo psíquico que se tornou ameaçador. Durante estes períodos de recolhimento, acedemos às nossas memórias e registos para compensar a negatividade por meio de boas lembranças, de vivências passadas harmoniosas e, com isso, reorganizamos o nosso mundo interno. Para consegui-lo é preciso que nos recolhamos ao núcleo do nosso ser, permanecer não comunicantes, isolados/as, até que novamente, do silêncio, possa advir algum sinal de que o perigo foi contornado e que já podemos voltar ao convívio

Contudo, não se pode permanecer assim para sempreA solidão precisa, paradoxalmente, da companhia e da sustentação dos demais. Sem apoio, a continuidade do ser não é realizável, o amadurecimento fica comprometido. Mesmo que ativamente escondidos/as, é claro o desejo de sermos descobertos/as – e isto só pode ser fruto de um temor, o temor de não sermos encontrados/as. Não se perca em si: dê a mão a esse medo – venha para onde os outros estão. 

Mas a única solidão não é a do desrelacionamento. Falemos da verdadeira pandemia do século XXI. 

Solidão interna, o menos possível”: A principal forma de solidão talvez seja mesmo a que decorre da desconexão de nós próprios/as - quando nos destratamos, quando sabotamos os nossos autocuidados, quando nos ausentamos da nossa própria autenticidade, quando entramos em modo defensivo diante das nossas mais espontâneas emoções, quando recusamos participar da vida humana por medo de amar, por medo de assumir a vulnerabilidade, por medo de sermos feridos/as, quando nos deixamos anestesiar pelo automatismo da rotina.

A solidão está estreitamente ligada ao desenraizamento e ao supérfluo: o desenraizamento de não ter um lugar reconhecido e garantido pelos outros, o supérfluo de não se sentir parte do mundo. Corresponde, por isso, a uma forma de alienação que é contrária às exigências fundamentais da condição humana. 

Intimativamente, o pavor à solidão é o pavor do encontro com o próprio silêncio e tudo o que encontramos nele. Daí a fuga para as atividades externas, nomeadamente o encetar de relações não significativas ("antes mal acompanhado do que só"). Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a procurar-nos noutras metades. E, claro, a sentirmo-nos permanentemente incompletos/as e insatisfeitos/as. A verdade é que nos deixam acreditar que cada um/a de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade. Não nos dizem – ou não no-lo dizem suficientes vezes – que já nascemos inteiros/as, que ninguém na nossa vida merece carregar às costas a responsabilidade de completar o que nos falta: crescemos por nós próprios/as. Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável. Ninguém é bom partido se não for inteiro/a. Primeiro, deveremos ter-nos. A ausência de nós mesmos/as é a única falta relevante.

Para viver plenamente em relação, é necessário, primeiro ser-se um/a. Para muitos/as de nós, a dor chega a ser tão intolerável que sentimos precisar de uma solução rápida para amenizá-la eficazmente: e escolhemos assim investir num novo amor e iniciar uma nova relação, como analgésico para a dor que o vazio da ausência provoca. Embora atualmente se tenha já naturalizado a mudança rápida de parceiro/a, enfrentar tudo que uma rutura relacional implica não é fácil. Um analgésico far-nos-á sentir menos dor, mas não tratará o verdadeiro problema. Na prática, dificilmente um coração magoado será curado através de uma nova relação. O mais provável é que apenas o tempo e a reconstrução de nós próprios/as possam consegui-lo. Superar a dor desta experiência implica cuidarmos de nós próprios/as, dando atenção às nossas necessidades emocionais, concentrando foco e energia nos nossos projetos e objetivos, reorganizando as nossas rotinas, resgatando convívios saudáveis e atividades prazenteiras, criando novos hábitos – devolvendo-nos ao mundo.

Tanto a solidão interna pode degenerar em solidão externa, como a externa em interna. As boas notícias é que vamos sempre a tempo de otimizar estas duas experiências subjetivas. Quando o/a solitário/a consegue reencontrar-se e recomeçar o diálogo consigo mesmo/a, de modo que o mundo e os seus semelhantes voltem a povoar o seu 'Self' como referências possíveis, mesmo que não presentes, a solidão deixa de ser cáustica. Quando foi a última vez que se pegou pela mão e se acompanhou até à sua interioridade? Quando foi a última vez que arriscou sair da zona de conforto e entregar-se à aventura da socialidade?

12. A Crise no Auto-Conhecimento e na Auto-Aceitação

À medida que a força da nossa individualidade começa a diminuir, tornamo-nos mais e mais desconhecidos para nós próprios/as. Muitas pessoas vivem na ignorância delas próprias e aceitam o fardo. Quem não se conhece, ou não se conhece o suficiente, corre o risco de não saber o que é melhor para si e assim, de deixar passar boas oportunidades ou de receber oportunidades que não o/a farão plenamente satisfeito/a: e assim, subaproveitarem as potencialidades positivas da vida. 

Pessoas que investem no seu auto-conhecimento são pessoas mais capazes de perceber que relações são positivas para si ou, pelo contrário, que relações são tóxicas; perceber de que forma se podem gerir bem as relações para que não sejam sufocantes ou de dependência, para que possam ser respeitadoras e não invalidadoras. Pode dizer-se que as pessoas que se conhecem bem a elas próprias são pessoas mais capazes de reconhecer e despertar os meus máximos potenciais, para transformarem as suas atitudes numa fonte de poder pessoal. São pessoas que dominam melhor as suas emoções, conseguem lidar melhor com todos os tipos de sentimentos, comportamentos, positivos ou negativos, independentemente da situação.

À medida que nos abandonamos, vai-se gerando em nós um "eu reprimido", na constante luta entre o dever e o desejo, mas do qual vamos tendo menos e menos consciência. 

Acceptance is such an importante commodity; some have called it “the first law of personal growth”. Acceptance is simply seeing something the way it is and saying, “That’s the way it is”. Acceptance is not approval, consent, permission, authorization, sanction, concurrence, agreement, compliance, sympathy, endorsement, confirmation, support, ratification, assistance, advocating, backing, maintaining, authenticating, reinforcing, cultivating, encouraging, furthering, promoting, aiding, abetting, or even liking what is. Acceptance is saying, “It is what it is, and what is is what is”. 

[Peter McWilliams] 

Até aceitarmos as coisas como ela são, ficaremos sempre a deturpá-las pelo filtro de preconceitos e de imperativos (“tem de ser assim”, “deve ser assim”). Quando a realidade desafia a nossa noção do que ela deve/tem de ser, a realidade ganha sempre.

Quando aceitamos a realidade, começamos a relaxar – deixamos ir a resistência, abdicamos da nossa presunção de omnipotência, acolhemos melhor a nossa pequenez, sem que isso nos diminua o carácter ou o valor. Vive-se mais positivamente a vida, porque quando reconhecemos o que é, a humildação eleva-nos à paz. Pelo contrário, fecharmo-nos na bolha de uma birra de descontentamento ou de injustiça não mudará nada – cristaliza-nos a evolução, paralisa-nos na linha de desenvolvimento.    

Aceitar é isso. É um ‘sem-polémica’. Reconhecer o que é sem protestar ou tentar mudá-lo. Conviver harmoniosamente com a realidade. Aceitar não é um estado de passividade ou de inação. Não significa que não possamos ou devamos mudar o mundo, acertar erros, substituir o mal pelo bem (a aceitação é, de facto, o primeiro passo para a ação bem-sucedida) – não significa tolerar. Significa acolher em silêncio.  

Embora a maioria de nós assuma que a tolerância é uma qualidade positiva, é uma espécie de resignação passiva (não confundir, caro/a cliente, com o termo «tolerância» que uso amiúde nas minhas sessões, a propósito do perfeccionismo e da superexigência!). Toleramos algo ou alguém porque não temos o poder de mudá-lo e decidimos manter uma convivência meramente ‘educada’ para evitar conflitos. É uma atitude bem melhor do que a agressão aberta ou a violência, mas não deixa de nos condicionar a verdade. Quando aceitamos alguém, tentamos entendê-lo/ ativamente, colocando-nos no seu lugar, de forma a desalojarmos do nosso coração o desassossego da antipatia. 

Filósofos/as de Gertrude Stein (“Uma rosa é uma rosa é uma rosa”) a Popeye (“Sou o que sou”) compreenderam bem o sentido da aceitação. Se há realidades que o/a fazem perder a têmpera ou a autoconfiança, pergunte-se a si mesmo/a: “O que não estou a conseguir aceitar?”. 

13. Os Sintomas São Nossos Amigos

E se estivermos alheios a isto, o corpo começará a manifestá-lo e os sintomas multiplicar-se-ão como mensagens cifradas: cansaço, desânimo, vazio, apatia, falta de foco, angústia. Ao invés de enfrentarmos estas dores associadas ao dilema do "eu reprimido", tendemos a desenvolver estratégias de fuga: 

- fantasia/daydreaming constante;
- consumo de substâncias;
- vícios (como o jogo);
- comportamentos perfeccionistas;
- workaholism;
- sexo compulsivo; 
- envolvimento em relações negativas (relações tóxicas, relações de dependência, namoro em série, relação de cuidador/a, relação de indisponibilidade, relação de repetição de padrões, relação de evitamento temeroso, entre outras); 
- perturbações mentais (ansiedade, depressão, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbações da alimentação e da ingestão, etc.)...

Digo frequentemente aos meus clientes que o que eles têm de mais saudável são os sintomas. Primeiro, porque os sintomas são o melhor que as pessoas conseguiram desenvolver para lidar com as dificuldades: são a única resposta possível naquele momento ; e segundo porque não faz sentido ver os sintomas como défices, mas sim como limitações ou incapacidades de maior flexibilidade.

Os sintomas são, no fundo, mensagens cifradas que pretendem alertar para algo que não está a correr bem na forma como a pessoa se organiza enquanto individualidade. Ao resistir-lhes, estamos apenas a prolongar e a intensificar o desconforto. 

Muitas vezes, o que os sintomas nos procuram dizer é:

1: Conduzimos um estilo de vida com níveis doentios de stress e/ou uma rotina de maus hábitos

2: Estamos rodeados de pessoas que não acrescentam nada de positivo à nossa vida e/ou drenam muito da nossa energia;

3: Estamos a evitar certas emoções: as emoções são absolutamente alicerçais para a orientação e para a motivação do nosso funcionamento adaptativo, e desempenham um papel essencial na resolução das tarefas de desenvolvimento características de cada fase do ciclo vital. Sendo da natureza das emoções virem à superfície, quanto as evitamos elas vêm sob a forma de sintomas. O evitamento pode ser cognitivo, afetivo ou mesmo comportamental; pode ainda dar-se por mecanismos de compensação (i.e., desenvolvimento de comportamentos que são o posto do que é prescrito pelas crenças: por exemplo, crenças em tornos de defeitos pessoais são substituídos por crenças narcísicas; ou, uma pessoa hiperdependente rejeita qualquer ajuda; ou, crenças em torno da incompetência suscitam uma recusa de todas as críticas). 

4: Estamos ancorados a algum evento passado que ainda não conseguimos largar

5: Estamos a precisar de uma mudança urgente de ambiente.

SAIBA MAIS SOBRE A ANSIEDADE COMO SINTOMA. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/a-ansiedade-como-mensagem-cifrada-do.html

14. Atenção aos Despercursos 

Quando ativamos o 'modo de sobrevivência às exigências do ideal antidepressivo de crescimento', a tendência é a de acorrermos ao que o mercado tem preparado para nós: serviços cujas atrativas embalagens prometem tornar-nos “mentalmente aptos”, atentos/as e resilientes para que possamos continuar a funcionar dentro do sistema. Somos então incentivados/as a trabalhar incessantemente no autoaperfeiçoamento, numa lógica de autoexame e automonitorização ao estilo do Protestantismo, que representa uma tecnologia de subjetivação e dominação por direito próprio. Ao invés de expiarmos pecados, caçamos agora pensamentos negativos. Nessas atrativas embalagens lê-se frequentemente: Psicologia, Psicologia Positiva, coaching e aconselhamento, mindfulness (ou 'consciência plena'), meditações guiadas, exercícios terapêuticos, retiros espirituais. O que poderia ser um investimento no Self passa a ser um investimento no 'ideal da pessoa-máquina'. Subvertemos potenciais meios de ajuda quando os colocamos ao serviço desses perversos ideais. É o caso dos/as clientes que me procuram para resolver não o problema de conexão com eles/as mesmos/as, mas para remover a incomodidade dos sintomas que os/as não deixa serem "perfeitos/as".

A  'indústria da felicidade' em geral, a mesma que nos vende o ideal antidepressivo de crescimento, despolitiza e privatiza o sofrimento. Se estamos insatisfeitos/as por ficarmos desempregados/s, por perdermos o nosso seguro de saúde e por vermos os nossos filhos incorrerem dívidas enormes através de empréstimos universitários, é da nossa responsabilidade aprendermos a ser mais conscientes. Jon Kabat-Zinn, o inventor do Mindfulness-Based Stress Reduction (MBSR), garante que “a felicidade é um trabalho interno”, um que simplesmente exige que prestemos atenção ao momento presente de forma consciente e propositada, sem julgamentos.

Ao praticar a 'consciência plena', a liberdade individual é supostamente encontrada na “consciência pura”, sem distração de influências externas corruptoras. Tudo o que precisamos de fazer é fechar os olhos e atentar a nossa respiração. Com o recuo para a esfera privada, o mindfulness torna-se uma 'religião do Self', aquilo que Ron Purser chamou de "McMindfulness", a nova espiritualidade capitalista
(https://www.amazon.com/McMindfulness-Ronald-Purser/dp/191224831X). A ideia de uma esfera pública está a ser desgastada e qualquer efeito de compaixão é por acaso. Como resultado, observa a teórica política Wendy Brown, “o corpo político deixa de ser um corpo, é antes um grupo de empresários e consumidores individuais”.

Guiado por um ethos terapêutico que visa aumentar a resiliência mental e emocional dos indivíduos, o mindfulness - tal como outras embalagens - endossa os pressupostos neoliberais de que todos/as somos livres para escolher as nossas respostas, gerir emoções negativas e “florescer” através de vários modos de autocuidado. Mas neste enquadramento, a maioria dos professores de mindfulness exclui um currículo que se envolva criticamente com as causas do sofrimento nas estruturas de poder e nos sistemas económicos da sociedade capitalista.

Reduzir o sofrimento é um objetivo nobre e deve, evidentemente, ser incentivado. Mas para fazer isto de forma eficaz, os professores de mindfulness precisam de reconhecer que o stress pessoal também tem causas sociais. Ao não abordarem o sofrimento coletivo e a mudança sistémica que possa eliminá-lo, roubam à 'consciência plena' o seu verdadeiro potencial revolucionário, reduzindo-a a uma técnica para praticamente qualquer propósito instrumental, supervendida e mercantilizada, reduzindo-a a algo banal que mantém as pessoas focadas em si mesmas

Os defensores do mindfulness, talvez involuntariamente, apoiam o status quo. Desprovida de uma bússola moral ou de compromissos éticos, desvinculada de uma visão do bem social, a mercantilização da 'consciência plena' mantém-na ancorada ao ethos do mercado. Em vez de discutirem sobre como a atenção é monetizada e manipulada por empresas como a Google, o Facebook, o Twitter e a Apple, localizam antes a crise nas nossas mentes. Não é a natureza do sistema capitalista que é inerentemente problemática; pelo contrário, é o fracasso dos indivíduos em estarem atentos e resilientes no contexto de uma economia precária e incerta. Depois, vendem-nos soluções que nos tornam capitalistas conscientes e satisfeitos/as. 

O mindfulness é refém da mentalidade neoliberal: deve ser posto em prática, deve ser provado que “funciona”, deve produzir os resultados desejados. Isso evita que seja oferecido como ferramenta de resistência, restringindo-o a uma técnica de “autocuidado”. Torna-se um solvente terapêutico – um elixir universal – para dissolver os obstáculos mentais e emocionais para um melhor desempenho e maior eficiência. Esta lógica permeia a maioria das instituições, desde os serviços públicos até às grandes empresas, e a busca pela resiliência é impulsionada pelo ditado: Adapte-se – ou morra. O resultado é a tal automonitorização obsessiva dos estados internos, induzindo à miopia social. A auto-absorção supera as preocupações com o mundo exterior.

Se esta versão da 'consciência plena' tivesse um mantra, seria algo como: “eu, mim e o meu”. A primeira pergunta que a maioria dos ocidentais faz ao considerar a prática é: “O que isso pode fazer por mim?”.mindfulness é vendido e comercializado como um veículo para ganho e gratificação pessoal. Auto-otimização. Quero reduzir o meu stress. Quero aumentar a minha concentração. Quero melhorar a minha produtividade. Quero melhorar o meu desempenho.

Uma 'consciência plena' verdadeiramente revolucionária desafiaria o sentido ocidental de direito à felicidade, independentemente da conduta ética. No entanto, os programas de McMindfulness não pedem aos executivos que examinem como as suas decisões de gestão e políticas empresariais institucionalizaram a ganância, a má vontade e a ilusão, que o Mindfulness Budista procura erradicar, não pedem aos indivíduos que examinem até que ponto conseguem chegar ao Outro, que obstáculos existem na forma de lidar com os seus afetos, o que desencoraja o espírito de solidariedade, de tolerância ativa, de aceitação da diferença, de empatia e respeito e amor. Em vez disso, a prática está a ser vendida como uma forma de desestressar, melhorar a produtividade e o foco, serem melhores pessoas para elas próprias, exclusivamente. Meditam, sim, mas a meditação funciona aqui como tomar uma aspirina para a dor de cabeça. Depois de a dor passar, continua tudo igual.

Esta posição submissa é enquadrada como liberdade. Com efeito, o mindfulness prospera no duplo discurso da liberdade, celebrando “liberdades” egocêntricas sem prestar atenção à responsabilidade cívica, ou no cultivo de uma consciência plena coletiva que encontra liberdade genuína numa sociedade cooperativa e justa. A redução do stress e o aumento da felicidade e do bem-estar pessoal são muito mais fáceis de vender do que questionar seriamente as causas da injustiça, da desigualdade e da devastação ambiental. Este último envolve um desafio à ordem social, enquanto o primeiro atende diretamente às suas prioridades, aguçando o foco das pessoas, melhorando o seu desempenho no trabalho e nos exames, e até prometendo melhores vidas sexuais.

Considerando a importância de uma síntese teórica que permita uma mais abrangente e profunda compreensão acerca da operacionalidade humana, adoto na minha prática clínica uma visão holística, multifocada e integradora, que inclui uma reflexão sobre o impacto das influências sócio-históricas e culturais na organização do psiquismo pessoal. Isto implica também um investimento na desmistificação dos mitos modernistas da ciência e na paralela demonstração de certas realidades como relativismos sócio-históricos (objetivo primário da chamada 'Psicologia Social Crítica'). 

As proposições da produção científica podem não ter qualquer compromisso com a validade empírica se forem modeladas por interesses político-económicos, cujo objetivo é a manutenção da ideologia que sustém o status quo das comunidades científicas. No campo da psicologia, a Psicologia Social Crítica denuncia o individualismo como forma de perpetuação de uma ideologia perversa, alertando para a necessidade de considerar o indivíduo no seu contexto pessoal e histórico, de forma a fortificar a ação social e assim, promover mudanças sociais positivas. Esta dimensão é particularmente importante quando atendo mulheres e grupos minoritários (como pessoas na comunidade LGBTQIAP+). 

Se o tipo de conhecimento científico desenvolvido pela psicologia está dependente do contexto social, não é de estranhar que os valores emergentes da sociedade pós-moderna gerem novas formas de perturbações subjetivas diferentes das observadas no passado. Atualmente assente num ethos de mercado, os problemas são definidos em termos de um modo de vida em que a realização das potencialidades do Self é substituída, em termos de importância pessoal, pela uniformização com a existência conformista coletiva, levando ao enfraquecimento da identidade ontológica do indivíduo e substituindo-a por uma identidade patológica. Na CresSendo não nos regemos por categorias nosológicas (ou seja, por perturbações psiquiátricas), mas pelo um desafio à resolução do problema de um Eu reprimido que deve 'despertar' para a sua autenticidade. 


Capítulo 2: LIBERTAR O 'EU REPRIMIDO'

1: O Processo de Individuação como Roteiro

"Todo o ser tende a realizar o que existe nele em germe, a crescer, a completar-se. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. 
Assim é para a pessoa, quanto ao corpo e quanto à psique"

[Nise da Silveira]

O processo de individuação de que falávamos na introdução deste artigo é a busca da 'totalidade' que há no ser humano, um movimento para a sua autorrealização como individualidade, através de um processo de integração de componentes psíquicos, de forma que todos os componentes da psique tenham o seu espaço e possibilidade de existência. 

É o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de  diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual

Fazê-lo com sucesso implica reconhecermos, aceitarmos e unificarmos todas as partes que constituem o nosso Self. Inclusive, claro (e sobretudo), aquelas com as quais estamos menos à vontade, que nos provocam mal-estar, medo, insegurança, aversão ou até mesmo sentimentos de intolerabilidade. 

2: A Capacidade de Amar Como Termómetro da Individuação - INTRO 

"O amor não é um caminho que te traz de volta para casa. O amor é a casa"
 
[Sri Sri Ravi Shankar]

O Amor (no sentido lato do termo) é o melhor termómetro do sucesso da nossa individuação e da nossa emancipação pessoal. Na verdade, o desafio da intimidade amorosa (no sentido lato do termo) é o mesmo que o da solidão: o encontro conosco (e com o Outro em nós) – é essa solicitação a sermos o que somos, sem máscaras, sem disfarce, sem manipulações ou hipercontrolo, numa expressão livre e prazenteira do que pensamos e sentimos, sem reservas ou ressalvas. É o chamamento a deixarmos o nosso verdadeiro ‘Eu’ ser visto.

Que acontece? Nascemos livres, originais, criativos/as, e amorosos/as. Mas não independentes. A compasso da nossa dependência dos adultos, acabamos por ser manipulados/as e moldados/as pelo seu sistema de crenças e de padrões: transgredi-lo é arriscarmo-nos a perder o carinho dos pais e o respeito dos amigos, e ao constrangimento dos castigos sociais. Desde cedo aprendemos que a liberdade tem um preço – que ser diferente dos outros pode custar-nos a exclusão e o isolamento. O medo faz-nos esconder então todas as partes do nosso Self que podem penalizar-nos. 

O Amor exige a força para sermos totais na nossa máxima autenticidade, para vencermos o medo que nos aprisiona nas máscaras. Isso implica muitas vezes libertarmo-nos do condicionamento familiar, educacional, religioso, moral, cultural e político, sermos livre pensadores/as – assumindo e aceitando a responsabilidade das suas próprias escolhas, livrando-nos da compulsão de vivermos de forma programada e rígida. 

O caráter ativo do Amor pode ser descrito afirmando-se que ele consiste, antes de tudo, em dar, não em receber – dar de nós mesmos/as, do nosso tempo, da nossa compreensão, do nosso conhecimento, dos nossos sentimentos. Dar, temendo desde dentro essa dádiva, condiciona e poderá mesmo paralisar o processo de entrega. É desde dentro que começa o Amor que podemos reciprocar: desde a aceitação dos medos e inseguranças que são expressões máximas da nossa humanidade. Por isso, o Amor é a derradeira prova-de-fogo da fidelidade ao nosso Self, é também a forma menos egoísta de protegermos esta fidelidade. Se não estivermos harmonizados/as com o nosso 'mundo interior' a tendência imediata será para projetarmos no Outro esses medos e inseguranças, de variadas maneiras. 

O que é a projeção? 
A projeção é um mecanismo do nosso psiquismo que se baseia no ato de atribuir a uma outra pessoa (animal e/ou objeto) as características, sentimentos ou intenções que se originam em nós próprios/as. Ou seja, esses aspectos da nossa personalidade são deslocados do interior para fora. A ameaça que sentimos dentro é tratada como se fosse uma força externa. A pessoa pode então lidar com sentimentos reais, mas sem admitir ou estar consciente do fato de que a ideia ou comportamento temido é dela mesma. 

Sempre que caracterizamos algo "externo" como mau, perigoso, e/ou pervertido, sem reconhecermos que essas características podem também ser verdadeiras para nós, é provável que estejamos a projetar. É igualmente verdadeiro que quando percebemos os outros como sendo poderosos, atraentes, e/ou capazes, sem apreciar as mesmas qualidades em nós próprios, também estamos a projetar. A variável crítica na projeção é que não vemos em nós mesmos/as algo (que nos parece claro e óbvio nos outros)

Um exemplo clássico é o das inseguranças pessoais que nos levam a boicotar a intimidade: há quem queira muito amar e ser amado, mas quando alguém retribui os seus sentimentos de verdade parece-lhes difícil resistir à tendência para evitá-lo. Torna-se muito difícil não sentirem que aqueles que lhes oferecem amor estão equivocados, são frágeis ou carentes. Que de alguma forma têm qualquer coisa de errado ("têm algum interesse secundário", "de certeza que me estão a enganar", "agem assim porque fizeram uma aposta em como me conseguiriam ludibriar").  

Estão a projetar nos outros as crenças e idealizações que têm a seu próprio respeito. Ficam um pouco enjoados/as com a proximidade, com o desejo de serem abraçados/as e acarinhados/as, com as palavras ternas que utilizam para agradá-los/as, e pela capacidade de os outros encontrarem pequenas coisas em si que os/as fascinam. Pode ser mais fácil quando não se é correspondido/a. Quando a sua principal preocupação era o enorme medo de que não reparassem em si. Era mesmo bastante mais fácil quando estavam numa relação muito tempestuosa com uma pessoa que nunca se comprometeu consigo, que os/as desprezou e que parecia estar permanentemente noutro lugar Mas agora que finalmente não existem dúvidas e é muito claro que alguém gostam deles/as, as coisas complicam-se. O carinho deles parece suspeito, incompreensível, e gera uma certa repulsa, porque, de alguma forma, não estão acostumados/as. Não encaixa com a visão que têm de si mesmos/as. Assumem que os outros não estarão a ver bem as coisas – e, talvez, então, acabem por comportar-se de forma muito desagradável para se certificarem de que os outro realmente percebem que não são quem pensavam, colocando um fim à relação. Ficam magoados/as, mas de alguma forma, psicologicamente, mais tranquilos/as. O amor pode ser difícil de receber quando não achamos que somos capazes de suscitar o amor do outro. A verdadeira questão não está no que fazer com os que lhes devotam amor; está num lugar completamente diferente: está em si e na relação consigo mesmos/as.

As pessoas que acolhemos na nossa vida refletem então as crenças que temos sobre nós mesmos/as. Pessoas que trarão à nossa superfície facetas que talvez precisem de ser curadas ou libertadas. Arranjamos lugar desde fora para o que precisamos dentro. Não, isso não significa que os jogos emocionais da sua parceria estejam também em si: os atraídos muitas vezes vibram no polo oposto da mesma questão. Pessoas controladoras são atraídas por pessoas submissas e dependentes, já que partilham a mesma teia emocional disfuncional. Se me permito relacionar com pessoas que não me valorizam ou que me criticam, muito provavelmente terei questões de autoestima a resolver dentro de mim. É a mesma questão em polaridades opostas: o controlador atrai o dependente. O agressivo atrai o submisso. O desconfiado atrai o mentiroso. O egoísta atrai o orgulhoso. A vítima atrai o culpado. Esse "match" acontece porque, na maioria das vezes, é a nossa parte ferida que escolhe o seu ‘amor’.

Relacionamo-nos com pessoas que revelarão o programa inconsciente necessário à nossa cura. Se não percebermos o nosso reflexo no espelho do Outro, isso significa que nos não estamos a ver a nós próprios/as. Se nos permitimos relações desequilibradas, algo não está bem dentro de nós: então, para mudar a qualidade de pessoas que atraímos, é necessário curarmos em nós os aspetos que ainda vibrem negativamente. Não lhe cabe a si curar pessoas tóxicas: mas sim, curar as partes suas que têm ressonância com a toxicidade delas.

SAIBA MAIS SOBRE ESTE TIPO DE MATCHS. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/quando-as-patologias-fazem-match.html

Será por isso apenas assisado que antes de nos entregarmos a alguém que concentre aspetos da nossa admiração, possamos desenvolver primeiro essas características em nós mesmos/as: sermos primeiro quem gostaríamos de ter a nosso lado.

Chegar ao Outro através do Amor faz-me lembrar a acrobacia aérea do trapézio de circo. Para fazê-lo em segurança é necessária a construção de uma boa rede de suporte que evite percalços dolorosos. Esta rede que deve ser tecida a duas (ou mais) mãos dentro da relação, num esforço de entendimento mútuo, deverá começar a ser tecida dentro de nós, com base numa valorização que seja sincrónica com a fidelidade ao nosso Self, à nossa máxima autenticidade - aquilo que fixará a nossa autoestima, e os autocuidados que a sustentam. É por aí que começamos. Pelo esforço de reconhecimento e integração de tudo o que faça parte do nosso mundo interior. 

3: Começar por Dentro 

Não temos motivo algum para desconfiar do nosso mundo, interior pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são os nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem-nos; caso existam perigos, então precisamos de aprender a amá-los” 

[Rainer Maria Rilke] 

É uma experiência frustrante (e comum) repetirmos constantemente os mesmos padrões autodestrutivos, apesar de desejarmos o contrário. As variações deste tema são muitas: procrastinação, relações com pessoas egoístas, consumos, compras compulsivas, beber ou comer demais. Dizemos a nós próprios/as que agora é que vamos controlar melhor as coisas e motivamo-nos para isso. E, durante algum tempo, até temos sucesso, mas de repente – damos conta de que o esforço dura pouco. 

Porque é que a tomada de consciência do problema não é suficiente para quebrarmos os ciclos autodestrutivos? A resposta é esta: porque o comportamento indesejado é ao mesmo tempo o problema e a solução. Um olhar atento voltado para a nossa interioridade permite-nos perceber que esses comportamentos são também uma forma de lidarmos com outros problemas – que permanecem, talvez escondidos ou fora da nossa consciência. E enquanto permanecerem escondidos, o ciclo indesejado de comportamentos – e o sofrimento emocional que lhe está associado – persistem.

Estaremos mais ou menos cientes das nossas procrastinações, dos nossos vícios, das nossas defensividades. Depois, não raro, vem a culpa. E todo um ciclo de autodepreciação ao qual reagimos com intolerância ou isolamento. Portas abertas para deixarmos entrar a ruminação – e, com ela, a sensação de vazio, a sensação de incompletude, da solidão, do muito que poderíamos ter conquistado e não conseguimos. Mais tarde ou mais cedo, o impulso ressurge, e ressurge de forma intensa. Torna-se impossível resistir. A culpa e o desânimo desaparecem no imediatismo desses momentos: é o alívio das ‘fugas’. E então, o ciclo doloroso começa outra vez

Quem não percebe o sentido profundo da sua própria vida pode fugir da angústia que isto provoca através de escapes variados. Não há sociedade que não tenha criado os seus mecanismos de escape à tristeza e severidade da realidade quotidiana. No dizer de Freud, não é possível enfrentarmos a realidade sem algum tipo de fuga, seja através de estados de embriaguez, seja através da fantasia, ou de outros vícios (como o jogo). 

Sob a premissa de que o sofrimento é proibido, a sociedade atual oferece muitas formas de apagar o nosso status de ‘sujeitos desejantes’, ou seja, movidos/as pelo desejo, movidos/as pelas forças de um inconsciente, em conflito, divididos/as, que desconhecem dimensões de si mesmos/as, que precisam de pensar e de simbolizar, e que precisam uns dos outros – aquilo, no fundo, que nos define como seres humanos. Quando foge para um dos seus escapes, a pessoa foge de ter de falar, de ter de pensar, de ter de assumir todos os seus conflitos internos, de assumir a dor de viver (consigo mesmo/a, com as suas dúvidas, com as insuficiências, com as suas necessidades, as suas carências e os seus desejos). 

As mais das vezes o que acontece é que procuramos nos galhos o que só pode ser encontrado nas raízes. É preciso ir mais fundo. Nas palavras de Victor Hugo: "(...) não se encontram diamantes senão nas profundezas da terra; não se encontram verdades senão no mais íntimo da alma". Devemos ir à raiz: ao nosso 'mundo interior'.

O que os/as clientes subjetivamente esvaziados/as de si mesmos/as costumam aprender na terapia é que a sua autoestima não se alimenta da acumulação de troféus ou conquistas, ou de «pedradas» químicas, mas do desenvolvimento de um sentido de motivação interna. Aprendem a procurar dentro o que lhes parece verdadeiro, em vez de procurar fora o que sentem como um divertimento passageiro, e a aceitar o que 'é' em vez de lutarem por um ideal perfeccionista. Este é o principal objetivo de qualquer processo: a (re)conexão da pessoa com ela própria

O sofrimento é inevitável - e desejável como tal. Encantados/as pela idealização do dia-a-dia, crianças, jovens e adultos/as acabam por sentir-se culpados/as, frustrados/as, e envergonhados/as quando sentem que falham o objetivo de incorporar o ideal anti-sofrimento. Chegam a acreditar que são internamente defeituosos/as, maus/más, indesejados/as, inferiores ou inválidos/as, o que lhes afeta a autoestima e lhes compromete a relação com os demais. Na verdade, o sofrimento problemático resulta da violência que exercemos sobre nós próprios/as quando permitimos que as verdadeiras necessidades do ‘eu real’ sejam subjugadas às imposições do ‘eu ideal’, invalidando a nossa realidade mais autêntica. Fazê-lo é sabotar o processo de individuação e, como tal, o nosso crescimento saudável.

Na raiz estão as feridas, os traumas, os vazios - ou, como diz um cliente meu evocando os conceitos de Jung: "um saco de sombras" -, as partes constitutivas do Self que nos provocam sofrimento e até aversão. Para evitar a dor de uma vida fragmentada e sem sentido é necessário unificarmos todas estas partes no nosso psiquismo. E isso implica mergulharmos nos recessos íntimos - conscientes ou não - para os quais relegamos as 'sombras'. Ninguém pode fazê-lo sem se harmonizar com essa inevitável condição que os tempos atuais tanto endemonizam: a vulnerabilidade.

4: Lidar com a Vulnerabilidade 

"Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e as suas limitações. Quem recusa aos outros a sua pequenez, comete um dos mais infelizes gestos de prepotência. E porque aís e rejeita, aos outros não poderá dar senão o sofrimento da perda. Querendo-se sem falha, será o mais incompleto dos seres

[Daniel Faria]

Quando se trata de vulnerabilidade, aprendemos desde cedo que a prioridade é disfarçá-la por completo. Usamos todos os meios possíveis para parecermos serenos/as, para apagarmos as evidências dos nossos desvarios, para aparentarmos ser mais “normais” do que achamos ser. A despeito da crescente difusão dos serviços de ajuda psicológica, por exemplo, e da naturalização dos muitos benefícios que se lhes reconhece na sociedade atual, persevera ainda um número significativamente alarmante de pessoas que por vergonha, culpa, medo e/ou ansiedade, se vê inibido de falar em público acerca da preocupação com a sua saúde mental, bem como de procurar, iniciar e dar continuidade a processos de ajuda psicológica, na sequência de preconceitos, ideias erróneas e falta de informação rigorosa sobre o papel e prática do psicólogo clínico.

E aqui devemos refletir: qual vergonha? A vergonha de quem se expõe? A vergonha de quem escuta, vê? Qual é o “olhar que envergonha”? A vergonha do olhar do parceiro/família e/ou do terapeuta? 

A vergonha decorre da internalização dos processos de transmissão do mundo social; por isso, pensar este sentimento implica reequacionar-nos no contexto da relação que mantemos com o Outro; por outras palavras, pensar quem e como somos diante dos demais, como nos apresentamos diante deles, que ideia temos de si, que ideia fazemos do que pensam a nosso respeito e de como interagem conosco e, em última análise, até que ponto estamos ou não capazes de afirmar a nossa individualidade diante do seu julgamento crítico. 

Por isso, a vergonha que a pessoa tem de si mesma, normalmente associada ao sentir-se internamente defeituosa, má, indesejada, inferior ou inválida, só é passível de ser compreendido na relação com os demais. Não raro, esta vergonha desenvolve-se em fases iniciais de vida, estando associada a críticas exageradas por parte de pessoas significativas (pais, amigos, colegas, professores), a ser-se ignorado em momentos importantes, e a experiências de rejeição real e/ou percebida. Daqui, resultam muitas vezes, o medo de desagradar aos outros, o desejo de agradar aos demais, e de se fazer corresponder às suas expectativas, mesma a expensas das nossas reais necessidades e desejos; dinâmicas de idealização ou exigências de perfeição (i.e., na criação do tal “eu ideal” aos olhos dos outros); sintoma de defesa na repressão dos instintos; e/ou ainda uma tendência para admirar exageradamente a sua própria imagem (i.e., narcisismo patológico). 

Na perspetiva que defendo, o sofrimento problemático – o sofrimento patológico – resulta da violência que exercemos sobre nós próprios quando permitimos que as verdadeiras necessidades do ‘eu real’ sejam subjugadas às imposição do ‘eu ideal’. E perdemos a oportunidade de obter ajuda quando deixamos que o “O que é que os outros vão dizer?” se imponha sobre aquilo que nós precisamos. Se por um lado, este encobrimento da verdade nasce da incapacidade de lidar com situações dolorosas, por outro lado percebemos que a resistência a essa mesma verdade, ou a sua não-aceitação também mantém e justifica o sofrimento. Porém, muito ao gosto pós-moderno dos ideais do homem/mulher-máquina, o sofrimento da experiência problemática é subaproveitado como possibilidade de aperfeiçoamento pessoal. É assim, não raro, que se ouvem comentários depreciativos quanto à procura de ajuda, e uma subtil voz de incentivo à obrigação de lidarmos sozinhos com os nossos problemas.

Estamos excessivamente focados/as na parte negativa da vulnerabilidade, quando ela encerra dimensões significativas profundamente positivas. 

Em certas situações, ao arriscarmos partilhar de forma transparente os nossos medos, as nossas inseguranças, as nossas dúvidas, as nossas limitações, os nossos defeitos, os nossos erros, criamos uma conexão com o Outro: longe de o afugentarmos, estamos a permitir com essas revelações que nos veja como mais humanos/as e, quem sabe, sentir que as suas próprias vulnerabilidades podem ter eco na vida dos demais

"Preciso de ti": Vulnerabilidade significa assumir que não podemos fazer frente a tudo sozinhos/as, e que temos direito a pedir ajuda.

"Enganei-me": Vulnerabilidade significa que podemos errar e que isso não nos define. O que nos define é sim, a forma como acolhemos essa parte de nós, a nossa própria falibilidade.

"Não sei": Vulnerabilidade significa aceitar que não sabermos tudo não nos faz nem melhor nem pior pessoa. Apenas... pessoa.

"Gosto de ti": É impossível criarmos uma intimidade saudável e satisfatória se não nos permitirmos abrir ao Outro na nossa mais autêntica totalidade. Para isso devemos estar confortáveis nela. Mostrar vulnerabilidade não significa que sejamos fracos/s, mas sim fortes o suficientes para nos enfrentarmos e aceitarmos.

A boa vulnerabilidade é um presente em forma de um risco tomado por outra pessoa. Por isso mesmo, pode ser a primeira pedra fundante de uma amizade (uma amizade propriamente dita, e não apenas um processo de admiração mútua, como troca de simpatias e consolos perante as dificuldades da vida).

Há contudo formas erradas de lidar com a vulnerabilidade – quando de forma agressiva impomos aos outros ajuda, ou quando as nossas falhas se repetem constantemente, ou quando ficamos mais perto da raiva ou da histeria, do que da tristeza e da melancolia. 

Sobretudo, mostrar a vulnerabilidade é uma forma curiosa de partilhar quem nós somos, pois apesar de todas as 'fraquezas' não temos por que ser vistos como ridículos/as ou dignos/as de pena miserabilística. Somos, pelo contrário, fortes o bastante para sermos fracos/as. Essas características não têm que ser o veredicto final de quem somos, não têm o poder de nos definir. É uma pequena tragédia gastarmos tanto tempo a lutar para esconder a vulnerabilidade, quando partilhá-la abertamente é a via para que a amizade e amor possam acontecer.

5: Entender para Intervir: Curar as Feridas Emocionais

"Sanidade significa amarmo-nos a nós mesmos exatamente da maneira certa, ou saber exatamente o que há em nós mesmos que é digno de amor. O que significa, essencialmente, ter um eu – acreditar numa imagem, numa história ou num conjunto de fantasias preferidas - para amar. (...) Hoje talvez devêssemos valorizar a sanidade pelas questões que ela nos obriga a enfrentar sobre como queremos viver e quem queremos ser. A sanidade pode fazer-nos perguntar não apenas como podemos amenizar as coisas inaceitáveis que temos em nós mesmos mas também como podemos libertar as coisas boas, as coisas que mais nos importam

[Adam Phillips]

O reconhecimento, aceitação e unificação de todas as partes que nos constituem vai forçosamente levar-nos a gerir as nossas emoções, sobretudo - o que é mais difícil - emoções negativas. A este nível, partilho algumas premissas que serão a base para podermos agir sobre esta tarefa fundamental e incontornável.

A primeira premissa diz-nos que não é a situação em si que determina o que a pessoa sente, mas como ela interpreta uma situação. Por isso é que um mesmo evento traumático para uma pessoa pode não o ser para outra. Em grande medida, essa interpretação vai depender de como estamos organizados/as emocionalmente: daí a importância fundamental da elaboração emocional na forma como percebemos e agimos sobre o mundo

Sucede que ninguém pode controlar a emergência das emoções (já que são instintivas). No limite, podemos regular a forma como nos posicionamos diante delas: e ou as confrontamos, ou as evitamos

O que tipicamente encontro em consultório são pessoas que evitam as emoções e, quando estas emergem, tendem a invalidá-las (criticando-se ou censurando-se por sentir o que quer que estejam a sentir). SAIBA MAIS SOBRE AUTO-INVALIDAÇÕES. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/auto-invalidacoes.html

Sabe-se é que é da natureza das emoções virem à superfície. Quando as evitamos, devido à sua carga negativa (até mesmo intolerável à consciência), as emoções tendem a adoecer e a manifestar-se sob a forma de sintomas. Como lembra o meu professor Eduardo Sá: “só deprime quem não se permite entristecer”.

As emoções são alicerçais para a orientação e para a motivação de um funcionamento adaptativo, e desempenham um papel essencial na resolução das tarefas de desenvolvimento características de cada fase do ciclo vital. Ajudam-nos a avaliar as alternativas, oferecendo motivação para mudar ou fazer algo, pelo que não reconhecê-las pode levar a comportamentos disfuncionais e expressões emocionais descabidas (como explosões de raiva ou altos níveis de ansiedade). Por outro lado, as emoções revelam-nos as nossas necessidades, sendo que ao guardá-las, teremos dificuldade em expressar e conseguir suprir essas mesmas necessidades. Por exemplo: uma pessoa que se sente triste tem, geralmente, a necessidade de acolhimento e securização; contudo, se não identifica adequadamente essa emoção, poderá expressá-la como raiva, por exemplo, e ao invés de se aproximar de outra pessoa, afasta-a, sem conseguir suprir a sua necessidade de acolhimentoDescrever, expressar e comunicar os nossos próprios sentimentos, regular as nossas emoções (retermos as emoções, porém sem reprimi-las e canalizá-las conforme a situação e o momento mais oportuno), bem como reconhecer as emoções dos outros (sensibilidade aos sinais verbais e não-verbais das outras pessoas) e controlar as nossas relações sociais são habilidades exigentes que devemos desenvolver para desafiar o défice emocional. É o domínio da Inteligência Emocional (IE). 

Uma pessoa emocionalmente inteligente possui cinco características, que podem sempre ser desenvolvidas ao longo da vida. São elas:

1. AUTOCONHECIMENTO: capacidade de ler as suas próprias emoções e de reconhecer os seus efeitos; usar o “instinto” para orientar as decisões (autoconsciência emocional); conhecer as suas próprias forças e os seus próprios limites (autoavaliação); e ter uma boa noção do seu próprio valor e das suas próprias capacidades (autoconfiança).

2. AUTORREGULAÇÃO: capacidade de escolher respostas adequadas, e não reagir apenas por impulso, mantendo sob controlo os impulsos e as emoções destrutivas (autodomínio emocional). O objetivo da autorregulação é encontrar o equilíbrio e não suprimir as emoções. É sentir a emoção proporcionalmente à circunstância, na medida certa. 

3. AUTOMOTIVAÇÃO: capacidade de dirigir as emoções a serviço de um objetivo ou realização pessoal, de ativar recursos suficientes para atingir os seus objetivos.

4. EMPATIA: capacidade de reconhecer as emoções nos outros e conseguir pôr-se no seu lugar, compreender o ponto de vista deles, e estar ativamente interessado nas questões que os preocupam. 

5. HABILIDADES SOCIAIS/DE RELACIONAMENTO: capacidade de relacionar-se melhor, comunicando-se de maneira clara e atenta às demandas e postura do Outro. 

SAIBA MAIS SOBRE INTELIGÊNCIA EMOCIONAL. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2023/01/inteligencia-emocional-chave-para-o.html

6: Substitua Aditivos por Sonhos

Quando desejamos algo, mas o que queremos (o objeto do desejo) não existe ou não está ao nosso alcance, experienciamos tensão. A necessidade de alívio provoca uma interrupção na linha do nosso equilíbrio: ficamos suspensos/as. 

função simbólica permite-nos recrear - mentalmente ou através de um símbolo (um objeto substituto) - objeto do desejo que está ausente do plano real, devolvendo-nos à satisfação/alívio, e assim destravando o estado de suspensão. Era o que fazíamos em criança, quando a brincadeira nos permitia transformar caixas de cartão em palácios ou carros de corrida, e os brinquedos ganhavam vida secreta. 

objeto do desejo pode ser qualquer coisa, inclusive nós próprios/as, ou uma mudança importante daquilo que somos. Muitas vezes, porém, estamos estagnados/as na mesmidade de quem somos e das nossas circunstâncias. É preciso imaginar que podemos ser diferentes, que podemos ser melhores. A função simbólica, bem trabalhada, permite-nos imaginar versões alternativas do nosso "eu". É precisa imaginação, é preciso desenvolver um pensamento divergente, é precisa criatividade.

Um dos maiores obstáculos à capacidade da existência simbólica é o fechamento num raciocínio demasiado concreto, unilateralmente orientado para os factos reais. 

Se o paradigma de determinada época é o reflexo dos seres que o adotam e o validam, então poderíamos dizer que atualmente o ser humano se encontra fragmentado e desconectado

Natureza e culturainstinto e moralidadesexualidade e realização tornaram-se incompatíveis, como resultado da cisão na estrutura humana. Este é o retrato da pessoa doente, o retrato da pessoa cindida, o retrato da pessoa na necessidade de união consigo mesma – na necessidade do simbólico (do grego, sym-ballo: atirar juntas duas coisas, voltar a reuni-las, como sinal de reconhecimento; duas partes de uma mesma realidade que antes estavam separadas). 

"Só a vida simbólica pode expressar a necessidade da alma" (Jung), e é pela sua ausência que a vida se banaliza e se lacuna de sentido, levando a que a atividade humana se disperse na sôfrega busca de um lucro externo que possa compensar o vazio interior e na perseguição de objetivos crescentemente irrealizáveis de riqueza, segurança e felicidade. 

pensamento simbólico é um conhecimento ancestral próprio do ser humano que se antecede à linguagem e à razão, e apresenta-se como um sistema pautado pelo seu carácter polar, contendo em si a capacidade de unir o micro ao macrocosmo, o casual ao acausal, o desordenado ao ordenado, cabendo-lhe a missão de reintegrar o Ser Humano – consigo mesmo e com os outros. A ideia subjacente ao processo de individuação considera justamente que a saúde deve ser reconquistada a partir da união destes percebidos opostos.

Estamos tão paralisados pelo horror ao tédio e tão focados/as na necessidade de apaziguamento do nosso fear of missing out que nos esquecemos de brincar. A este propósito trago para reflexão algumas palavras de Gonçalo M. Tavares: 

Há um termo extraordinário que é: ocupação dos tempos livres. Ou seja, há tempos livres e se ocuparmos os tempos livres eles deixam de ser ocupados. (…) o medo do espaço vazio, hoje, por exemplo, é raro as crianças terem um espaço vazio. Têm já brinquedos, estruturas… o próprio espaço está ocupado a dizer o que é que elas devem fazer. Esta ideia da criança não se aborrecer… o prefácio da criatividade é o aborrecimento, o tédio. A criança tem que inventar, criar, criar algo para combater o tédio. As crianças de hoje não têm tempo de ócio, o tempo da criança hoje é de negócio. Tempo útil, utilizável. Ou seja, e de acordo com a etimologia da palavra, o latim, negar o ócio”.

Outro dos grandes responsáveis pela diminuição da motivação pelo jogo simbólico e pelo brincar é a excessiva ligação digital. Um atento olhar analítico sobre os últimos cem anos de história societal mostrará a crescente diminuição do tempo real que os adultos passam com as crianças, a sua substituição por outras instituições (escolas, creches, centros de estudo) e/ou pela exposição (cada vez mais precoce) a meios de comunicação, crescentemente remodelados e redefinidos pela internet, sobretudo com a emergência e popularização em massa de redes sociais. 

Permita-se deixar, por momentos que seja, o ruído do ‘tempo útil’ para trás e faça um detox digital. Enquanto isso, ajude também as crianças mais pequenas. Estipule um local – a que podem chamar de “Ser feliz offline” –, onde todos possam largar os telemóveis: durante a refeição, um filme ou jogo em família. As férias de Verão são uma altura ideal para os detox digitais. Todos beneficiam em melhorar a qualidade de tempo em família como em fazer atividades em conjunto, em detrimento das individuais, ligadas a ecrãns. Apesar da resistência inicial, estas​ experiências são bastante apreciadas. O/A seu/sua filho/a vai perceber que perder coisas online não é nada de especial e, em contrapartida, ganha a família. Isto, claro, desde que a família esteja realmente presente e disponível.

7: O Silêncio Interior como Via de Acesso À Subjetividade 

O estado atual do mundo e da vida em geral é de doença. Se eu fosse um médico e me pedissem a minha opinião, eu diria: "Criem silêncio". Esta é, talvez, uma das frases mais citadas de Kierkegaard. O remédio há quase 200 anos era fazer silêncio para que se ouvisse o essencial e se permitisse uma conexão com o 'espírito'. Hoje parece ainda mais urgente fazer-se silêncio, pois não só há mais barulho por todo o lado – devido ao crescimento industrial e ao mandato económico de constante produção – como também há menos vontade de estabelecer essa relação com o espírito. Duplo ruído, acrescente-se: o tecnológico e o ideológico; não apenas as constantes rajadas de máquinas, mas também o barulho do insignificante, o burburinho do inconsequente, do entretenimento constante e da banalidade, o que Kierkegaard chamou de “snakke”.

"Só a pessoa que pode permanecer essencialmente silenciosa pode essencialmente falar, pode essencialmente agir. Silêncio é interioridade. A orientação interior do silêncio é a condição para uma conversa cultivada". Somente a partir da quietude interior podemos relacionar-nos plena e significativamente com o mundo exterior e estabelecer uma relação pessoal íntima. Arnold Kone resume bem o pensamento de Kierkegaard em relação ao silêncio: ele diz-nos para pararmos de ouvir todas as vozes do mundo finito, para ouvirmos o silêncio em toda a sua tenebrosidade, e a voz virá. E com ela, a força e a coragem de 'obedecer' às exigências íntimas e individuais da visão pessoal de cada Self.

O entretenimento e a dedicação para alcançar o sucesso mundano são um rodeio, um desvio que nos faz nunca chegar à raiz. Invista numa retirada do excessivo mundo exterior, e das suas ruidosas distrações. Tempo de agenda: comece pelo tempo de agenda. Organize-se. SAIBA MAIS SOBRE COMO SE ORGANIZAR. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/falta-de-organizacao.html

8: Défice de Espiritualidade e Saturação Materialista

"Quando comunicamos com a alma tornamo-nos simples como crianças, como Cristo disse que deveria ser. É trágico o facto de tão poucas pessoas chegarem alguma vez a possuir a sua própria alma antes de morrerem. «Nada é mais extraordinário no homem», diz Emmerson, «do que um ato praticado por si próprio». É bem verdade. Muitas pessoas não são elas próprias. Os seus pensamentos são opiniões de outrem, as suas vidas um mimetismo, as suas paixões uma cópia. Cristo não foi só o Individualista por excelência, foi também  primeiro da História. Têm tentado apresentá-lo como um vulgar filantropo, semelhante aos desagradáveis filantropos do século XIX, ou enfileira-lo como Altruísta, com os empíricos e sentimentais. Na realidade, porém, não foi uma coisa nem outra. Evidentemente que sente piedade pelos pobres, pelos prisioneiros, pelos infelizes, pelos vagabundos; mas sente  muito mais compaixão pelos ricos, pelos duros hedonistas, peloso que desperdiçam a sua liberdade tornando-se prisioneiros das coisas, pelos que usam belas vestes e vivem em casas de reis. A Riqueza e o Prazer pareciam-lhe maiores tragédias que a Pobreza e o Sofrimento". 

[Oscar Wilde]

Há um tema na literatura que há muito ganhou a minha simpatia: a aurea mediocritas ou 'mediania sensata'. Encontramo-la nos versos de Horácio ["Quem se contenta com a sua dourada mediania / não sofre inquieto as misérias de um telhado em ruínas, / nem habita palácios sumptuosos / que provocam inveja"], e na filosofia de Aristóteles, que especifica que a virtude está no meio termo (a virtude, por exemplo, da temperança, encontra-se no ponto médio entre a insensibilidade e a intemperança; a virtude da coragem, se levada em excesso, manifestar-se-ia como imprudência e, por deficiência, covardia). Nesta abordagem, a doutrina do meio-termo é o meio desejável entre dois extremos, um de excesso e outro de deficiência. 

O conceito expressa a ideia de que a felicidade pode ser encontrada na valorização do que a vida nos dá, por oposição à insaciável ambição egóica que nos faz desvalorizar o que temos, que nos faz querer sempre mais, que nos orienta (cegamente) para a superficialidade da ostentação. Representa a dignificação do ser-se ‘mediano’, penhor de tranquilidade: a defesa de que nem sempre é melhor estarmos em situação de sucesso, de poder ou a ocupar o centro das atenções, entrando em comparações competitivas, invejas e mesquinhices; é o desprezo da ‘sociedade do espetáculo’, da vida fantasiada com requintes cinematográficos, idealizada como devendo ser sempre cheia de pose e de fúria, rica em aditivos e efeitos especiais, aceite na sua mais descorada banalidade.  

Hoje partilho-o a recordar a importância de nos abrigarmos sensatamente nos recessos da nossa intimidade, procurando a satisfação do nosso relativo bem-estar, ao invés de tentarmos meramente perfazer a cuba de extraordinárias idealizações sociais: re-humanizando a nossa visão sobre o mundo, cuidando de quem nos ama, oferecendo-lhes a mesa, com eles repartindo o nosso pão, acompanhando-lhes a sua linguagem com a intenção de os compreender. Percebendo que mesmo sem telepatia, fantasmas ou discos voadores, a vida consegue ser incrivelmente intensa e apetecível de se fruir por completo quando acolhemos a gratificação das coisas simples, e investimos na desafiante arte de saber amar.  

9: A Capacidade de Amar Como Termómetro da Individuação - OUTRO 

A relação otimal não é aquela que une pessoas perfeitas ou iguais, mas aquela onde cada um/a aprende a aceitar as suas próprias imperfeições e as imperfeições do Outro, convivendo harmoniosamente com elas, admirando-as e celebrando-as, querendo conjuntamente o que é importante para cada um/a.

Semelhante aprendizagem relacional implica superarmos as nossas próprias idealizações, e dispormo-nos a conhecer o Outro por quem ele é (não o que gostaríamos ou precisássemos que fosse), através de um processo que se impõe naturalmente lento, gradual, e tentativo, na sua mais irredutível singularidade. Para sermos bem-sucedidos/as, importa praticarmos uma atitude de recetividade, de acolhimento e de cuidado, incentivando o Outro à expressão máxima da sua individualidade, e abstendo-nos de forçá-lo aos moldes de um protótipo ideal, anterior à sua realidade própria, fazendo exatamente o mesmo conosco. 

São vários os vilões para quem procura ‘um grande amor’: 

(1) contabilizar vícios e virtudes do/a candidato/a (nesta matéria o curriculum vitae conta pouco); 
(2) comparar, agrupar, criar tipos ou perfis (esta ideia mostra, à parta, que a pessoa não estará disposta a deixar-se surpreender); 
(3) imaginar que o amor é uma questão do que somos ou exclusivamente da intensidade sentimental, e não do que fazemos; 
(4) agir fora do tempo e do espaço da relação (quando ‘fazemos filmes’, quando antecipamos diálogos e traçamos planos imaginários não compatíveis com a intimidade real conquistada pelo casal); 
(5) supor que se ambos gostam das mesma coisas gostarão um/a do/a outro/a (o amor implica certas condições para começar mas, em geral, bastante triviais: gostos comuns ou incomuns não chegam nem ao prólogo de um grande romance. Há histórias onde o amor só entra em cena no segundo ou terceiro tempo; na maioria das vezes, estas experiências são muito mais ricas do que os grandes amores à primeira vista).

Ter consciência destes vilões é já uma boa forma de cuidarmos a rede de suporte necessária à nossa acrobacia aérea de trapézio que é chegarmos ao Outro através do Amor. 

À medida que a minha prática clínica se faz mais e mais próxima de uma abordagem psicodinâmica (há ainda muito a explorar e a aprender a este nível), gosto cada vez mais de pensar, como Brian Nosek, que "o psicanalista é, juntamente com o paciente, um construtor de sonhos. O que o coloca mais perto do poeta que do médico". É que o Eugénio de Andrade tem razão, como todos os poetas têm: “É urgente o amor, é urgente permanecer”. Este é um manual que se escreve na unicidade de cada pessoa, com cada pessoa individualmente, respeitando o seu próprio vocabulário. O grande Freud deixou-o inegavelmente claro: “A psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”. Aqui estarei para Si,

Saiba mais em consultório.

Com estima,
Carlos Marinho

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