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TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA


FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM? 

A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. "Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa" justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas feridas emocionais.

[Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferida física, mas as feridas emocionais não são propriamente fáceis de detectar. São feridas psíquicas, experiências precoces de grande dor, lesões 'da alma' que têm origem na nossa infância, mas que - não sendo curadas - nos acompanham até à idade adulta. Aqui, podem manifestar-se de várias formas: ansiedade, ataques de pânico, isolamento, incapacidade para nos abrirmos emocionalmente, desconfiança, pensamentos catastróficos, sentimentos intensos de indignidade, de inutilidade, de incapacidade, de desvalia]

Embora possam deixar cicatrizes profundas e trazer consequências severas à nossa saúde mental, estes complexos conteúdos internos têm geralmente o seu início nos primeiros anos de vida - quando a nossa personalidade e autoestima estão ainda a ganhar forma -, associados à maneira como as pessoas mais importantes que nos rodeiam (figuras cuidadoras) interagem e se relacionam conosco. Ao longo deste período, e a compasso destas relações, viver-se-ão momentos felizes, mas também experiências difíceis - até mesmo severamente dolorosas. Estas marcas continuam presentes em idade adulta, embora não percebamos o tanto que nos influenciam os pensamentos, as decisões que tomamos, a gestão das emoções que sentimos, e até a maneira como damos e recebemos afeto. 

A TEORIA DAS 5 FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: UM OVERVIEW

Lise Bourbeau construiu a teoria das 5 feridas emocionais da infância. O que são e que impacto podem ter nas nossas vidas? Neste capítulo, faço apenas uma pequena descrição introdutória. Encontrarás mais pormenores abaixo.

Primeira ferida: ABANDONO
• Se na tua infância, as tuas figuras cuidadoras (pais, avós, etc.) se separaram e não te sentiste importante para eles;
• Se percebeste falta de carinho por parte da tua família e sentiste que eles não passavam tempo suficiente contigo; 
• Se os teus colegas te excluíram ou ignoraram na escola. 
...é provável que tenhas interpretado estas situações como abandono. Esta ferida gera um grande medo da solidão. 

Pessoas com feridas de abandono tendem a tornar -se dependentes dos outros, procurando constantemente atenção e companhia. 

Segunda ferida: REJEIÇÃO
• "Tens de ser como o teu irmão"; 
• "Quando é que começas a tirar boas notas como ele?";
• "Olha como ele conseguiu, devias aprender a fazer o mesmo";

Frases como estas podem gerar uma ferida profunda de rejeição. A autoestima da pessoa começa a enfraquecer, acreditando que sempre haverá alguém melhor. Qual é o seu maior medo? Ser-se rejeitado/a novamente. 

A pessoa evita situações que possam reativar esta ferida, distancia-se dos outros de quem também precisa e ao mesmo tempo tem medo deles, isolando-se e não se relacionando com os outros. 

Terceira ferida: HUMILHAÇÃO 
• O Miguel sofreu bullying na escola, e lembra-se das experiências no recreio como o pior momento da sua vida, cercado de colegas que o humilhavam pelo seu aspeto físico;
• As palavras que lhe foram ditas ainda hoje lhe ecoam na cabeça; 
• Já adulto, há momentos em que o Miguel replica aquele discurso ofensivo consigo mesmo: "sou feio, sou inútil, não consigo fazer nada". 

Pessoas com esta ferida acreditam que pouco valem, criticam-se, escondem as suas conquistas e virtudes, tendo vergonha de quem são. 

Quarta ferida: TRAIÇÃO 
• Esta ferida é gerada por promessas não cumpridas;
• O Simão jogava futebol todos os sábados, e ia sempre a campo na esperança de ver o pai sentado na arquibancada, para incentivá-lo como prometido; mas nunca o via: o pai tinha, invariavelmente, uma reunião mais importante a que atender. Já adulto, o Simão é uma pessoa desconfiada e controladora. O seu maior medo é sentir-se traído novamente. 

Pessoas com esta ferida não se abrem emocionalmente porque duvidam constantemente das atitudes dos outros. 

Quinta ferida: INJUSTIÇA
• Esta ferida pode aparecer a compasso de pais frios, com muitas regras estritas e rígidas; 
• Esta postura educativa pode fazer com que as crianças não se sintam valorizadas, acreditando que nunca se esforçam o suficiente;
• Quando choram, são muitas vezes consideradas fracas, e por isso crescem a esconder os próprios sentimentos. Mostram-se ao mundo como pessoas rígidas e procuram constantemente o perfeccionismo, querendo fazer tudo para provar que valem a pena, que conseguem, que são dignos de amor e aprovação.

E AGORA?

Muitos dos nossos problemas atuais podem ser consequências das feridas de infância. Aquelas que permanecem abertas, não curadas, convertem-se eventualmente num trauma silencioso que influencia todas as decisões que tomamos. 

Temos então duas opções: podemos manter-nos prisioneiros/as delas ou decidir enfrentá-las. Somos as nossas feridas, sim: mas também a forma de superá-las. O nosso passado pode influenciar o nosso presente, mas não o determina. Não fomos feitos/as para viver de uma só forma para o resto da vida - temos o poder de nos recompormos depois de situações difíceis, inclusivamente traumáticas.

 ALGUMAS NOÇÕES QUE TE PODEM AJUDAR A CURAR FERIDAS EMOCIONAIS:

1. A Aceitação. O primeiro passo é aceitar que a ferida existe: olhar para ela, reconhecê-la, observá-la. É esperado que na vida tenhamos que resolver situações difíceis: assumir que algo aconteceu e nos magoou é crucial para começar o processo de cura;

2. Provocar emoções. Não é errado sentir dor, tristeza e raiva. Simplesmente não nos podemos dar ao luxo de não expressar as emoções que as feridas nos causam. Deixa que as lágrimas fluam e descoagulem aqueles sentimentos que ficaram congelados por tantos anos; 

3. Reconhecer as consequências das feridas. Que aspectos da nossa vida são hoje afetados por estas feridas? Por exemplo, a ferida pode estar a influenciar o nosso desempenho no trabalho, as notas que obtemos na universidade ou o vínculo que temos com as nossas parcerias. Devemos observar: como tenho vindo a lidar com estas consequências? Estamos efetivamente a enfrentá-las, ou a evitá-las? Começar a perceber como lidamos com as nossas feridas permite-nos mudar esses hábitos por outros mais adaptativos e saudáveis. 

4. Transformar a ferida. As feridas encerram o potencial de ensinar-nos algo valioso: a importância de aprender, mudar e melhorar. Um espaço psicoterapêutico pode ajudar-nos a explorar essas feridas, para identificarmos de onde vem a dor, e saber o que ela nos ensina hoje. Cada pessoa vive as suas feridas de forma particular, o que pode ser muito simples para alguém pode ser muito difícil para outra.

COMO É QUE RECONHEÇO UMA FERIDA DE INFÂNCIA? 

Nós somos as nossas feridas e podemos reconhecer-nos em qualquer uma das cinco acima referidas. É devido a este reconhecimento que não podemos deixar de colocar a seguinte questão: é possível ter-se mais do que uma ferida? 

Sim, é possível! De facto, e aqui vem a parte interessante, cada ferida emocional tem características específicas. Como podemos experienciar mais do que uma, estas experiências entrelaçam-se, dando origem a padrões de comportamento que são muito complexos e únicos. Alguém que, por exemplo, tenha vivido a ferida da rejeição pode desenvolver um padrão de auto-proteção (distanciar-se das pessoas, ser frio/a e distante para evitar ser magoado/a), e se ao mesmo tempo tiver também vivido a ferida da traição, a esta personalidade fria e distante juntar-se-á o traço de personalidade de desconfiança e controlo. Esta combinação de feridas vai moldar a sua personalidade. Cada pessoa reage de forma única: é como uma impressão digital ou a íris do olho, não há duas iguais. 

A Patrícia está em casa, são 14h32 de uma sexta-feira; senta-se em frente ao computador, aceita a videochamada que inicio. É a nossa primeira sessão de psicoterapia virtual, assim que a vejo, reparo que tem os olhos inchados, as olheiras muito marcadas, como se estivesse cansada. Diz-me que chorou até agora, que está cansada de não poder confiar em ninguém. 

"Há uma pessoa que amo de todo o coração e, embora ele também me ame e o demonstre de mil maneiras, não consigo abrir-me emocionalmente, não consigo aproximar-me dele, não consigo demonstrar-lhe afeto, não consigo dizer-lhe que o amo, não consigo sequer dar-lhe um abraço, tenho uma espécie de concha que não consigo abrir”. 

Descobrimos ao longo da sessão que, apesar da sua frieza e indiferença, da sua intenção de fingir que não se importa, cada vez que ele não aparece, ela sente-se extremamente perturbada, lança-se a especular sobre qual terá sido a razão da sua rejeição. 

"Penso imediatamente que ele não vai falar mais comigo, que encontrou alguém melhor, que é mentira que me ame como diz, que não valho nada. É óbvio que me vai deixar com a sensação de que não sou suficiente para ele, por isso é melhor ir-me embora, é melhor deixá-lo antes que me deixe a mim". 

A Patrícia convence-se de que não o ama e, com toda a frieza que recolhe a si, deixa-o partir. Diz-lhe que não quer ter mais nada a ver com ele. Mas ele volta, e ela aceita-o. Pouco tempo depois, aa propósito de alguma atitude insignificante dele, que ela interpreta como rejeição, a Patrícia deixa-o novamente, e assim por diante, num loop infinito. 

Este é um padrão que se repete porque há todo um sistema construído sobre uma ferida profunda que a acompanha desde criança, que a faz entrar em pânico com a rejeição. 

As feridas da infância são sentidas desta forma: nos nossos pensamentos, nos nossos corpos - são viscerais, rodeiam-nos a toda a hora, não ficam apenas na infância. O terrível é que, embora tenham tido origem lá, a infância é tão decisiva que determina a nossa qualidade de vida quando adultos/as. Carregámo-la conosco até hoje, faz parte de cada decisão que tomamos, mesmo que não nos apercebamos disso. 

QUAL É A CAUSA DAS FERIDAS?

Não há uma causa única. É complexa e multideterminada. Ainda assim, considera-se que as feridas aparecem de duas formas principais: através da vivência de uma experiência única, mas muito intensa e traumática (por exemplo: uma mãe ou um pai que me humilha à frente de outras pessoas, rindo-se de mim por algo que me magoou; um abuso físico ou sexual; até mesmo uma frase muito ofensiva como: “Olha como o Carlos é inútil, nunca consegue fazer nada bem! Coitadinho, é tão estúpido!"); ou através de uma sucessão de várias experiências negativas. Poderão ser "menores", talvez não tão traumáticas, mas tendem a suster-se ao longo do tempo. Por exemplo: Se a minha mãe demorava sempre mais de 20 minutos para ir buscar-me à creche ou à escola, e todos os meus colegas estavam já de saída, eu ficava sempre sozinho com os professores, o que me fazia sentir pouco importante.

Qualquer um destes dois tipos de experiência deixa uma marca emocional que permanece cravada em nós e na nossa autoestima. É importante compreender que só alguém significativo, alguém que amamos e admiramos, pode provocar semelhante ferida.  

Não é a mesma coisa ouvir de uma criança desconhecida, que acabei de conhecer no parque, que sou um inútil porque não sei andar de bicicleta sem rodas, do que ouvi-lo de uma mãe ou pai que amo profundamente. O impacto emocional é diferente. Lembremos que são os adultos aqueles que nos mostram, através das suas lentes pessoais, como é o mundo; se nos disserem que somos inúteis, vamos acreditar e muito provavelmente isso irá estabelecer-se como uma ferina no nosso autoconceito e nas nossas competências de autovalorização.  

Diante de cada uma destas feridas, as pessoas constroem MÁSCARAS que lhes permitem defender-se sempre que a ferida é reativada no presente. Estas máscaras, como mecanismos de defesa, ajudam-nos a proteger-nos do sofrimento que acumulamos . Algumas máscaras são mais óbvias, outras mais difusas. 

(1) A FERIDA DO ABANDONO:

Esta ferida é habitualmente encontrada em pessoas cujos pais... 
...as abandonaram ou as deixaram aos cuidados de outros agentes educativos por muito tempo;
...passavam os dias tão imersos no trabalho que nem lhes prestavam atenção;
...quando chegavam exaustos do trabalho, nem olhavam para elas; 
...estavam tão imersos nas suas próprias discussões conjugais que nunca pararam para vê-las; 
...nunca brincaram com elas, ou nunca fizeram algo que elas se lembrem de ter gostado.  

Qualquer uma destas situações pode ser interpretada pela criança como uma situação de abandono. Pessoas com esta ferida tendem a ser dependentes de outras; por exemplo, sempre que uma parceria ou amizade atual me diz que não pode sair comigo, ou que tem outro grupo de amigos com quem também faz planos, a minha ferida de abandono será certamente ativada. 

A pessoa que é ferida por situações que, à primeira vista, se diriam insignificantes, interpreta que será novamente abandonada, e faz tudo para evitá-lo. Tanto quer assegurar a proximidade dos outros, que acaba por ser um fardo sufocante, levando-os a afastarem-se na necessidade de 'respirar'. 

O maior medo das pessoas com a ferida do abandono é a solidão. A pior coisa que pode acontecer é ficarem sozinhas; é como se este medo gritasse: "Não me deixes! Não te vás embora! Não me abandones outra vez!". 

A máscara que as pessoas colocam é a máscara da dependência. Como tenho medo de me sentir novamente abandonado/a, sinto-me muito ansioso/a quando a outra pessoa se vai embora e me deixa - mesmo que seja por pouco tempo. Por exemplo: se a minha parceria foi beber um copo com amigos e me disse que voltava às 20 horas, são agora 20h05 e ainda não voltou, talvez pense: "Porque é que ainda não voltou? Se me disse que voltava às 20 horas, como é que não aparece? Bem, é melhor telefonar-lhe, não é?". É aqui que surgem os comportamentos desproporcionados, os pensamentos obsessivos: "Quando é que ela vem? Porque é que não me enviou uma mensagem? Porque é que não me responde? Estava online há 2 minutos, porque é que não me respondeu? Não me quer ver? Será que me vai abandonar?". 

O importante aqui é fazer-se amizade com a solidão, investindo tempo na descoberta do que a pessoa gosta de fazer sozinha, sem depender de ninguém

(2) A FERIDA DA REJEIÇÃO:

Esta ferida é comummente observada em crianças que sentem que os pais... 
...gostam mais dos irmãos, ou de outras pessoas, do que delas;
...não as aceitam como um todo; 
...usam frases como: "não és tão inteligente como o teu irmão"; "porque é que queres que eu te vá ver a esse jogo, se nunca és convocado?" - frases como estas estão habitualmente na origem da ferida de rejeição, levando a que a pessoa...
...não se sinta digna de afeto e rejeitar-se a ela própria;
...tenha a ideia de que nunca ninguém a vai escolher; 
...não acredite que os outros a possam compreender; 
...se isole, não conseguindo criar relações verdadeiras ou laços fortes. 

O medo aqui é o de ser novamente rejeitada pelos outros. É por isso que coloca a máscara do/a fugitivo/a. Lembram-se da história de Patrícia, no início? Aqui podemos ver claramente a sua ferida e a sua máscara: disposições que a impossibilitaram de se ligar ao seu grande amor, de se despir da sua concha emocional. O terror gerado pela simples possibilidade de a outra pessoa não a amar é tão forte que é melhor afastar-se dela primeiro. 

A aprendizagem aqui começa por deixar de fugir das situações que nos ameaçam com o fantasma da rejeição, e começar a enfrentá-las

(3) A FERIDA DA HUMILHAÇÃO:

Esta ferida é gerada em crianças cujos pais... 
...gozaram com elas;
...humilharam-nas perante os amigos ou a família; 
...desaprovaram-nas;
...desqualificaram-nas; 
...criticaram-nas muito;
...chamaram-nas de inadequadas, 
...disseram algo sobre elas que era inaceitável; 
...disseram algo que as fez sentir vergonha; 
...disseram-lhes que eram inúteis.
 
Se esta ferida não for curada, a pessoa tenderá a perceber-se constantemente na mira do gozo do outro ("O outro está sempre a gozar e a rir-se de mim, tal como faziam comigo na minha infância"), levando a... 
...que viva na defensiva para se defender de quem lhe quer fazer mal; 
...que viva a pensar que vale pouco;
...que se critique frequentemente; 
...que tenha vergonha de si própria. 

A máscara que a pessoa com uma ferida de humilhação coloca é, na maioria dos casos, a de um masoquista
...critica-se constantemente; 
...acha que merece sofrer; 
...para não ser gozada, esconde-se;
...prefere passar despercebida, não ser vista. 

No outro extremo (lembre-se que um pólo tem sempre o seu oposto complementar), a pessoa pode converter-se...
...num tirano;
...numa egoísta; 
...num humilhador (porque foi intimidada, agora é a intimidadora; para não ser gozada, gozo primeiro como defesa).

A forma de curar esta situação é aprender a divertir-se, a compreender que tem o direito a fazê-lo, deixando de se castigar e começando a colocar-se como prioridade

(4) A FERIDA DA TRAIÇÃO:

Esta ferida é gerada em crianças cujos pais...

...lhes disseram muitas vezes que, se tivessem boas notas na escola e se portassem bem, receberiam aquele brinquedo que tanto queriam. Depois, quando a criança era bem sucedida, a prenda nunca chegava. “Se ficares calado/a enquanto o pai tem a reunião, levo-te aos gelados quando acabar". E efetivamente, a criança silencia-se, esperando ansiosamente o término da reunião, encastelado expectativas. O pai acaba a reunião, a criança pergunta-lhe: “Então, quando é que vamos comer um gelado?", e ele responde: "Nem pensar. Não fazes mais do que a tua obrigação em estares calado/a: se um adulto está numa reunião, está a trabalhar, não tem que te dar nada em troca". Se este tipo de comportamento se torna repetitivo, gera uma personalidade desconfiada; as pessoas isolam-se e começam a descrer da palavra dos outros. Para me defender, antes que me magoem, coloco uma máscara de controlo excessivo e torno-me muito desconfiado

Esta ferida percebe-se em atitudes como expressas nesta vinheta: "A minha parceria atual diz-me que vai sair com amigos e eu não acredito nela. Sinto que me vai trair. Peço-lhe então que me envie fotografias com eles, é a única coisa que me tranquiliza. Não o faço como se fosse má pessoa ou um fardo. Na verdade, se ela não me enviar a fotografia, não consigo parar de pensar". "Mas aconteceu alguma coisa com a sua parceria que a fez pensar que ela a poderia trair?" pergunto eu. "Não. Nada. Pelo contrário, não tenho sequer um indício para desconfiar".

...normalmente, é muito difícil para esta pessoa revelar a sua intimidade, por medo de que isso seja usado contra ela. Falamos de pessoas que têm dificuldade em mostrar as suas emoções e sentimentos, que se protegem emocionalmente atrás de muralhas;
...têm a sensação constante de que é perigoso os seus sentimentos serem conhecidos;
...gostam de ter sempre a última palavra e de organizar a vida dos outros;
...são muitas vezes pessoas sensíveis, mas não mostram a sua sensibilidade;
...estão muito ocupadas a mostrar a sua força e o seu controlo, o que na realidade não passa de um mecanismo de defesa. 

A forma de curar esta situação é desenvolver um bom sentido de autoconfiança na capacidade de superação de eventuais adversidades relacionais, através do enfrentamento da própria vulnerabilidade.

(5) A FERIDA DA INJUSTIÇA:

...pais ou mães frios/as e rígidos/as;
...que impõem um estilo de educação ou um tratamento mais autoritário, 

Estas crianças sentiram que não eram valorizadas como suficientes. A reação da pessoa que sofre desta ferida é dissociar-se dos seus sentimentos para se sentir protegida e não vulnerável, ou seja, isolar-se dos seus sentimentos. Para se defenderem da ferida, constroem a máscara da rigidez... 

...são pessoas que exigem fazer tudo na perfeição; 
...tornam-se extremamente perfeccionistas para provar que são dignas, porque, no fundo, a sua ferida lhes diz que não o são; 
...gostam que tudo esteja arrumado no seu devido lugar; 
...o seu sistema nervoso é um pouco sobre-excitado devido à hiperexigência que experimentam e embora pareçam normalmente pessoas muito calmas, devido ao seu autocontrolo, não o são efetivamente porque se controlam de forma constante; 
...a sua emoção mais comum é a raiva, especialmente em relação a si próprias por não atingirem os ideais de perfeccionismo que têm; 
...tendem a ter dificuldades em render-se, em deixar-se ir, em sentir prazer. 
...têm muita dificuldade em expressar a sua ternura. 

O que precisam de trabalhar como aprendizagem é a sua rigidez mental e começar a cultivar ou a percorrer o caminho da flexibilidade, da tolerância ou da confiança nos outros. 

EM TABELA:

NOTAS FINAIS:

Um esclarecimento. Nenhuma ferida emocional tem que ver com as pessoas específicas da nossa vida atual. Nada que ver com a parceria, o/a amigo/a, o/ familiar, o/a chefe: o que está em causa não são as pessoas em si, que funcionem como estímulos de ativação, mas sim a nossa ferida, que se reativa uma e outra vez, e que só pode ser curada desde dentro, por nós mesmos/as. Se não curarmos as feridas, o que fica é um trauma silencioso que começa a exercer pressão a partir do inconsciente, impedindo-nos de aceder a um sentido de paz, dirigindo as nossas decisões, tornando-nos reféns dele. Sim, nós somos as nossas feridas mas, acima de tudo, somos também a forma como as enfrentamos: somos o que nos encorajamos a personalizar, somos a forma como nos recompomos após acontecimentos desagradáveis ou traumáticos. 

Saberás que estás no caminho da cura quando tiveres consciência de que uma ferida foi ativada. Quando fores capaz de observar a dor dessa ferida, saberá que a ultrapassaste quando já não sentires necessidade de usar a máscara protetora que lhe está associada. A aceitação traz alívio, faz com que a dor desapareça gradualmente. 

Sabe mais em consultório.
Aqui para ti,

Com estima,
Carlos Marinho

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