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A ANSIEDADE COMO MENSAGEM CIFRADA DO CORPO

Lembro muitas vezes aos meus clientes que o problema da ansiedade não são os sintomas. A ansiedade é desconfortável mas não é fatal. O problema da ansiedade é o de não nos permitirmos confrontar o medo. É mantermo-nos num estado de ter medo do Medo. E nesta sequência, confundimos desejos com exigências ou necessidades – por exemplo, quando o “EU QUERO SER FELIZ” se converte no “EU TENHO DE SER FELIZ”, correndo o risco de tomar na vida uma posição perigosamente rígida. 

Exemplos de crenças deste género, não adaptativas, podem encontrar-se verbalizadas da seguinte forma, ainda que nem sempre conscientemente: “Eu devo ser perfeito/A em tudo o que faço ou não vão gostar de mim”, “Se eu não vencer, serei um/A falhado/A e todos os outros me vão rejeitar”, “Devo obter a aprovação de todos”, “O fracasso é intolerável e inaceitável” e “Não posso demonstrar fraqueza/vulnerabilidade ou achar-me-ão um/a fraco/a”. 

Como fracassar esta tarefa é condenar-nos a fortes emoções negativas (as mais das vezes percebidas como intoleráveis), tendemos não só a controlar todos os nossos movimentos (internos e externos), sujeitamos a nossa forma de ser e de estar a uma dinâmica de constante restrição, mas também a evitar ao máximo o desconforto provocado por essas mesmas emoções. Como vivemos numa sociedade onde é proibido ser-se vulnerável, procuramos não ter dificuldades. Atendendo a que os problemas e as dificuldades da vida são incontornáveis, tentar não ter problemas e dificuldades é a primeira receita para se criar um problema grave. Digo-o, porque não raro, muitos problemas são criados e mantidos pelo esforço, tantas vezes impulsivo, sôfrego, em escalada de desespero, que incorremos para lhes encontrar solução. Algo como: “Ainda não resolvi o problema porque ainda não me esforcei o suficiente”, e com isto, acabamos por perpetuar um ciclo vicioso, um mais do mesmo que só vai piorando, à medida que desanimamos e perdemos esperança. É nesta ótica que muitas dificuldades ansiosas são passíveis de serem definidas como impasses, ou como Einstein diria, pura insanidade

Ao querermos evitar todos os desvios que percebemos como falhas, erros, incapacidades e/ou insuficiências, acabamos por condicionar a nossa capacidade de elaboração emocional

As emoções são absolutamente alicerçais para a orientação e para a motivação do nosso funcionamento adaptativo, e desempenham um papel essencial na resolução das tarefas de desenvolvimento características de cada fase do ciclo vital. 

Sendo da natureza das emoções virem à superfície, quanto as evitamos elas vêm sob a forma de sintomas. 

Na lógica de Kierkegaard, que apresenta a ansiedade como sinal da perfeição humana, digo frequentemente aos meus clientes que o que eles têm de mais saudável são os sintomas. Primeiro, porque os “sintomas” são o melhor que as pessoas conseguiram desenvolver para lidar com as dificuldades (são a única resposta possível naquele momento – devemos é flexibilizar o universo da pessoa para que ela possa acolher formas alternativas de lidar com os problemas); e segundo porque não faz sentido ver os sintomas como défices, mas sim como limitações ou incapacidades de maior flexibilidade.

Um banho de realidade é essencial. Uma pessoa sob influência da depressão não quer só deixar de “ser deprimida”, quer ser feliz para sempre. A ideia de “ser feliz para sempre” só serve para trivializar as pequenas alegrias do quotidiano e manter a depressão. Um hipocondríaco não quer somente deixar de o ser, mas quer ter a certeza de que nunca vai adoecer a sério. É obviamente este desejo que alimenta a ruminação hipocondríaca. 

O mesmo se poderia dizer de resto de todas as pessoas sob influência da Ansiedade – deixariam de o ser facilmente se alguém lhes garantisse segurança absoluta contra o perigo (e se obviamente acreditassem nesta garantia). Qualquer um destes desejos (ser feliz para sempre, estar sempre seguro) alimenta, sem a pessoa o desejar ou perceber, o problema de que se queixa.

O evitamento pode ser cognitivo, afetivo ou comportamental; pode ainda dar-se por mecanismos de compensação (i.e., desenvolvimento de comportamentos que são o posto do que é prescrito pelas crenças: por exemplo, crenças em tornos de defeitos pessoais são substituídos por crenças narcísicas; ou, uma pessoa hiperdependente rejeita qualquer ajuda; ou, crenças em torno da incompetência suscitam uma recusa de todas as críticas). Por último, pode ainda manifestar-se na abordagem que temos diante da resolução de problemas, nomeadamente, através da procrastinação e da dependência.

E por falar em dependências… “O problema não é tropeçar, mas agarrar-se à pedra”. Este é um dos núcleos duros da manutenção da ansiedade. Não só a crença de que não conseguimos superar os medos por nós próprios, como toda uma série de comportamentos e atitudes que nos põe a jeito para demolir o nosso sentido de autonomia. Quanto mais dependermos de elementos externos, elementos sobre os quais não detemos controlo, mais insegurança teremos em relação à nossa própria capacidade de enfrentar os medos

A propósito deste ponto, existe uma anedota segundo a qual uma pessoa consulta um psiquiatra para lhe dizer: «Doutor, o meu irmão é doido: ele pensa que é uma galinha»; perante a situação, o médico pergunta: «Por que não o interna?», ao que o sujeito retruca: «Até podia, mas é que preciso dos ovos».

Esta é, para mim, a relação que muitas pessoas têm com as próprias perturbações: uma relação de apego, de dependência. Há um ganho no alívio tóxico do evitamento que mantém a pessoa presa à zona de conforto, uma zona que não deixa avançar, que paralisa o crescimento. Este é fundamentalmente o problema da ansiedade: o medo de crescer. Porque crescer é perder. Mas é preciso tolerar o sofrimento se queremos aceitar a condição de estarmos vivos. Será desta autonomia que iremos então estar preparados para criar relacionamentos maduros e de qualidade

Por isso, como fiz, Leslie Becker-Phelps, “Aceite a sua dor. Vai doer menos”. O apego é um dos venenos do mundo. Acontece como resistência à vida, como condicionalismo que nos adia o amadurecimento, que nos limita a capacidade de assumir a responsabilidade pelas escolhas que fomos e vamos fazendo ao longo da nossa viagem. Em vez de acompanhar os movimentos de evolução, de responsabilidade e de autonomia, a energia do apego tem o movimento oposto tentando recriar a dependência e a permanente busca de algo ou alguém que seja o provedor de amor, alimento, segurança e proteção, quando não o conseguimos assegurar por nós mesmos/as. 

O processo de emancipação convida a todos nós à libertação gradual de qualquer tipo de apego ou dependência. Pede-nos autonomia, maturidade, capacidade de assumirmos o nosso caminho pessoal confiando que temos em nós os recursos suficientes para ir navegando pela vida. Pede que identifiquemos onde é que ainda vivemos infantilmente na forma de pedir, exigir e esperar e aprendamos a ser o/a adulto/a capaz de se autosustentar. Será desta autonomia que iremos então estar preparados para criar relacionamentos maduros e de qualidade. Relacionamentos onde o respeito pela individualidade e proposta pessoal de cada um é uma prioridade. Relacionamentos livres de exigências, cobranças e jogos psicológicos que mais não são do que repetições das birras infantis.

Barricar-se na zona de conforto é sabotar o processo de crescimento, e como tal o processo de individuação, ou seja, o processo de formação e particularização do que é ser-se individual e, em especial, o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. Tornar-se si mesmo/a não significa tornar-se perfeito/a, mas pleno/a, completo/a, aceitando tanto qualidades como defeitos, maximizando os seus potenciais

A humildade é um sentimento primordial na gestão desta dinâmica, já que nos relembra a importância de aceitar cada erro, limitação, insuficiência e incapacidade como oportunidade de aprendizagem; é esta humildade que tem o poder de frear o império do narcisismo na nossa forma de perceber a vida e as relações com os demais.  

O cerne da manutenção das dificuldades ansiosas está na percebida necessidade de esconder a vulnerabilidade afeta a essas emoções negativas. Esta ocultação, ou negação, é a derradeira forma de evitamento diante das emoções negativas. Registando-as, partilhando-as de forma oral ou escrita com outras pessoas de confiança, abrindo-se ao diálogo, é uma forma de reconhecê-las e descoagular o ‘sistema circulatório emocional’ congestionado.

Importante é também aceitar as sensações físicas de ansiedade. Aceitá-las como a um hóspede inesperado e desconhecido que surgisse à porta de casa. Na lógica de não lutar contra as sensações, antes, abrir-lhes espaço, percebendo que os sintomas são mensagens cifradas que pretendem alertar para algo que não está a correr bem na forma como a pessoa se organiza enquanto individualidade. Ao resistir, estamos apenas a prolongar e a intensificar o desconforto. 

Isto passa por manter-se funcional apesar da ansiedade. Agir como se não estivéssemos sob efeito da ansiedade. Podemos diminuir o ritmo, a velocidade com que executamos as tarefas, por exemplo, mas não deixar de nos mantermos ativos, entrando em desespero e interrompendo tudo para evitar a situação. Se uma pessoa evitar, já o sabemos, a sua ansiedade diminuirá na altura, mas o seu medo aumentará, e numa próxima ocasião, a ansiedade será pior. Se ficarmos onde estamos – e continuarmos a fazer as nossas coisas – a ansiedade tende a diminuir

Bertrand Russell tem uma passagem no livro «A Procura da Felicidade» que me parece apropriada para fecho: “Toda a infelicidade resulta de uma desintegração ou falta de integração; há desintegração no Eu por falta de coordenação entre o consciente e o inconsciente; há falta de integração entre o Eu e a sociedade quando os dois não estão unidos pela força dos interesses e afeições objetivas. O homem feliz é aquele que não sofre de nenhuma destas faltas de unidade, cuja personalidade não está dividida contra si própria nem em conflito com o mundo”. 

A ansiedade percebe-se, enfim, não como causa problemática mas sim como consequência de certas dificuldades – dificuldades de integração do ‘eu’ na relação com ele próprio, e na relação com os outros, o que se dá fundamentalmente por meio da capacidade de elaboração sócioemocional. No cenário de uma sociedade de funcionamento racionalista, onde cada vez mais o sentido de valorização pessoal do ser radica não no valor das suas capacidades mas num parâmetro imposto desde o exterior que lhe regula o valor em função de um (a)preço de mercado, há um espírito de manipulação e instrumentalidade que se sobrepõe ao carácter direto e humano no relacionamento interpessoal das pessoas. 

Fenómenos psicopatológicos como a ansiedade surgem, enfim, quando o projeto de vida de uma pessoa se desvia da intenção, quando a realidade histórica se desvia ou afasta do projeto existencial (isto é, a escolha originária do ‘eu’)

A história afasta-se do projeto através da vivência de contradição (intrapessoal e/ou interpessoal) na sequência da qual o indivíduo escolhe afastar-se ou é afastado. 

Bloqueado no seu desenvolvimento, a pessoa vive em função de uma identidade que já não corresponde ao seu presente e cada vez mais afastada tanto da sua possibilidade de autoafirmação como da de sentir a existência como realidade, vê-se destituída da capacidade de se projetar no futuro

No arrasto desta alienação face ao ‘eu’, a atividade humana dispersa-se na sôfrega busca de um lucro externo que possa compensar o vazio interior e na perseguição de objetivos crescentemente irrealizáveis de riqueza, segurança e felicidade, acabando por (a)creditar o sintoma patológico como uma identidade substitutiva do ‘eu’ em que está incapaz de se centrar – desta forma, o comportamento sintomático torna-se uma identidade patológica que se contrapõe ao enfraquecimento da sua identidade ontológica. Quem não é capaz de desejar convictamente aquilo em que crê, porque de per si o desejo criaria as premissas de uma ação não-conformista, descobre no sintoma um álibi para a sua passividade e para o seu medo, por onde poderá canalizar os seus conflitos e encaminhar o terror do seu desnorteio. 

Saiba mais no consultório.
Aqui para si.

Com estima,
Carlos Marinho

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