Ao querermos evitar todos os desvios que percebemos como falhas, erros, incapacidades e/ou insuficiências, acabamos por condicionar a nossa capacidade de elaboração emocional.
As emoções são absolutamente alicerçais para a orientação e para a motivação do nosso funcionamento adaptativo, e desempenham um papel essencial na resolução das tarefas de desenvolvimento características de cada fase do ciclo vital.
Sendo da natureza das emoções virem à superfície, quanto as evitamos elas vêm sob a forma de sintomas.
Na lógica de Kierkegaard, que apresenta a ansiedade como sinal da perfeição humana, digo frequentemente aos meus clientes que o que eles têm de mais saudável são os sintomas. Primeiro, porque os “sintomas” são o melhor que as pessoas conseguiram desenvolver para lidar com as dificuldades (são a única resposta possível naquele momento – devemos é flexibilizar o universo da pessoa para que ela possa acolher formas alternativas de lidar com os problemas); e segundo porque não faz sentido ver os sintomas como défices, mas sim como limitações ou incapacidades de maior flexibilidade.
Um banho de realidade é essencial. Uma pessoa sob influência da depressão não quer só deixar de “ser deprimida”, quer ser feliz para sempre. A ideia de “ser feliz para sempre” só serve para trivializar as pequenas alegrias do quotidiano e manter a depressão. Um hipocondríaco não quer somente deixar de o ser, mas quer ter a certeza de que nunca vai adoecer a sério. É obviamente este desejo que alimenta a ruminação hipocondríaca.
O mesmo se poderia dizer de resto de todas as pessoas sob influência da Ansiedade – deixariam de o ser facilmente se alguém lhes garantisse segurança absoluta contra o perigo (e se obviamente acreditassem nesta garantia). Qualquer um destes desejos (ser feliz para sempre, estar sempre seguro) alimenta, sem a pessoa o desejar ou perceber, o problema de que se queixa.
O evitamento pode ser cognitivo, afetivo ou comportamental; pode ainda dar-se por mecanismos de compensação (i.e., desenvolvimento de comportamentos que são o posto do que é prescrito pelas crenças: por exemplo, crenças em tornos de defeitos pessoais são substituídos por crenças narcísicas; ou, uma pessoa hiperdependente rejeita qualquer ajuda; ou, crenças em torno da incompetência suscitam uma recusa de todas as críticas). Por último, pode ainda manifestar-se na abordagem que temos diante da resolução de problemas, nomeadamente, através da procrastinação e da dependência.
E por falar em dependências… “O problema não é tropeçar, mas agarrar-se à pedra”. Este é um dos núcleos duros da manutenção da ansiedade. Não só a crença de que não conseguimos superar os medos por nós próprios, como toda uma série de comportamentos e atitudes que nos põe a jeito para demolir o nosso sentido de autonomia. Quanto mais dependermos de elementos externos, elementos sobre os quais não detemos controlo, mais insegurança teremos em relação à nossa própria capacidade de enfrentar os medos.
A propósito deste ponto, existe uma anedota segundo a qual uma pessoa consulta um psiquiatra para lhe dizer: «Doutor, o meu irmão é doido: ele pensa que é uma galinha»; perante a situação, o médico pergunta: «Por que não o interna?», ao que o sujeito retruca: «Até podia, mas é que preciso dos ovos».
Esta é, para mim, a relação que muitas pessoas têm com as próprias perturbações: uma relação de apego, de dependência. Há um ganho no alívio tóxico do evitamento que mantém a pessoa presa à zona de conforto, uma zona que não deixa avançar, que paralisa o crescimento. Este é fundamentalmente o problema da ansiedade: o medo de crescer. Porque crescer é perder. Mas é preciso tolerar o sofrimento se queremos aceitar a condição de estarmos vivos. Será desta autonomia que iremos então estar preparados para criar relacionamentos maduros e de qualidade.
Por isso, como fiz, Leslie Becker-Phelps, “Aceite a sua dor. Vai doer menos”. O apego é um dos venenos do mundo. Acontece como resistência à vida, como condicionalismo que nos adia o amadurecimento, que nos limita a capacidade de assumir a responsabilidade pelas escolhas que fomos e vamos fazendo ao longo da nossa viagem. Em vez de acompanhar os movimentos de evolução, de responsabilidade e de autonomia, a energia do apego tem o movimento oposto tentando recriar a dependência e a permanente busca de algo ou alguém que seja o provedor de amor, alimento, segurança e proteção, quando não o conseguimos assegurar por nós mesmos/as.
O processo de emancipação convida a todos nós à libertação gradual de qualquer tipo de apego ou dependência. Pede-nos autonomia, maturidade, capacidade de assumirmos o nosso caminho pessoal confiando que temos em nós os recursos suficientes para ir navegando pela vida. Pede que identifiquemos onde é que ainda vivemos infantilmente na forma de pedir, exigir e esperar e aprendamos a ser o/a adulto/a capaz de se autosustentar. Será desta autonomia que iremos então estar preparados para criar relacionamentos maduros e de qualidade. Relacionamentos onde o respeito pela individualidade e proposta pessoal de cada um é uma prioridade. Relacionamentos livres de exigências, cobranças e jogos psicológicos que mais não são do que repetições das birras infantis.
Barricar-se na zona de conforto é sabotar o processo de crescimento, e como tal o processo de individuação, ou seja, o processo de formação e particularização do que é ser-se individual e, em especial, o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. Tornar-se si mesmo/a não significa tornar-se perfeito/a, mas pleno/a, completo/a, aceitando tanto qualidades como defeitos, maximizando os seus potenciais.
A humildade é um sentimento primordial na gestão desta dinâmica, já que nos relembra a importância de aceitar cada erro, limitação, insuficiência e incapacidade como oportunidade de aprendizagem; é esta humildade que tem o poder de frear o império do narcisismo na nossa forma de perceber a vida e as relações com os demais.
O cerne da manutenção das dificuldades ansiosas está na percebida necessidade de esconder a vulnerabilidade afeta a essas emoções negativas. Esta ocultação, ou negação, é a derradeira forma de evitamento diante das emoções negativas. Registando-as, partilhando-as de forma oral ou escrita com outras pessoas de confiança, abrindo-se ao diálogo, é uma forma de reconhecê-las e descoagular o ‘sistema circulatório emocional’ congestionado.
Importante é também aceitar as sensações físicas de ansiedade. Aceitá-las como a um hóspede inesperado e desconhecido que surgisse à porta de casa. Na lógica de não lutar contra as sensações, antes, abrir-lhes espaço, percebendo que os sintomas são mensagens cifradas que pretendem alertar para algo que não está a correr bem na forma como a pessoa se organiza enquanto individualidade. Ao resistir, estamos apenas a prolongar e a intensificar o desconforto.
Isto passa por manter-se funcional apesar da ansiedade. Agir como se não estivéssemos sob efeito da ansiedade. Podemos diminuir o ritmo, a velocidade com que executamos as tarefas, por exemplo, mas não deixar de nos mantermos ativos, entrando em desespero e interrompendo tudo para evitar a situação. Se uma pessoa evitar, já o sabemos, a sua ansiedade diminuirá na altura, mas o seu medo aumentará, e numa próxima ocasião, a ansiedade será pior. Se ficarmos onde estamos – e continuarmos a fazer as nossas coisas – a ansiedade tende a diminuir.
Bertrand Russell tem uma passagem no livro «A Procura da Felicidade» que me parece apropriada para fecho: “Toda a infelicidade resulta de uma desintegração ou falta de integração; há desintegração no Eu por falta de coordenação entre o consciente e o inconsciente; há falta de integração entre o Eu e a sociedade quando os dois não estão unidos pela força dos interesses e afeições objetivas. O homem feliz é aquele que não sofre de nenhuma destas faltas de unidade, cuja personalidade não está dividida contra si própria nem em conflito com o mundo”.
A ansiedade percebe-se, enfim, não como causa problemática mas sim como consequência de certas dificuldades – dificuldades de integração do ‘eu’ na relação com ele próprio, e na relação com os outros, o que se dá fundamentalmente por meio da capacidade de elaboração sócioemocional. No cenário de uma sociedade de funcionamento racionalista, onde cada vez mais o sentido de valorização pessoal do ser radica não no valor das suas capacidades mas num parâmetro imposto desde o exterior que lhe regula o valor em função de um (a)preço de mercado, há um espírito de manipulação e instrumentalidade que se sobrepõe ao carácter direto e humano no relacionamento interpessoal das pessoas.
Fenómenos psicopatológicos como a ansiedade surgem, enfim, quando o projeto de vida de uma pessoa se desvia da intenção, quando a realidade histórica se desvia ou afasta do projeto existencial (isto é, a escolha originária do ‘eu’).
A história afasta-se do projeto através da vivência de contradição (intrapessoal e/ou interpessoal) na sequência da qual o indivíduo escolhe afastar-se ou é afastado.
Bloqueado no seu desenvolvimento, a pessoa vive em função de uma identidade que já não corresponde ao seu presente e cada vez mais afastada tanto da sua possibilidade de autoafirmação como da de sentir a existência como realidade, vê-se destituída da capacidade de se projetar no futuro.
No arrasto desta alienação face ao ‘eu’, a atividade humana dispersa-se na sôfrega busca de um lucro externo que possa compensar o vazio interior e na perseguição de objetivos crescentemente irrealizáveis de riqueza, segurança e felicidade, acabando por (a)creditar o sintoma patológico como uma identidade substitutiva do ‘eu’ em que está incapaz de se centrar – desta forma, o comportamento sintomático torna-se uma identidade patológica que se contrapõe ao enfraquecimento da sua identidade ontológica. Quem não é capaz de desejar convictamente aquilo em que crê, porque de per si o desejo criaria as premissas de uma ação não-conformista, descobre no sintoma um álibi para a sua passividade e para o seu medo, por onde poderá canalizar os seus conflitos e encaminhar o terror do seu desnorteio.
Aqui para si.
Carlos Marinho
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