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"SEXO É DO BOM" e "AMOR É DO BEM"?

"Sexo é do bom / Amor é do bem / Amor sem sexo / É amizade / Sexo sem amor / É vontade” [Rita Lee]

A maioria dos ordenamentos políticos e jurídicos dos países que compõem o Ocidente tende a proteger o amor romântico e o ideal monogâmico das relações sócio-afetivas, e a restringir a promiscuidade e as relações não-monogâmicas consensuais como dinâmicas moralmente decadentes. Fará sentido validarmos semelhante cisão? Que pensar da diferenciação de valores associados a cada uma destas dimensões? E que impacto terá esta influência na maneira como organizamos o nosso psiquismo individual e relacional? Quero hoje demorar-me convosco a refletir sobre um pouco sobre o tema. 

Muito amiúde, constato em consultório que as pessoas que se apresentam como monogâmicas raramente compreendem, concebem ou problematizam conscientemente as suas relações como tal. Isto acontece for efeito da ‘mononorma’, a norma social pela qual a monogamia é percebida como forma culturalmente correta de organizarmos o nosso funcionamento conjugal. Por consistir em algo naturalizado nas sociedades ocidentais contemporâneas, reflexões e diálogos em torno desta temática não costumam acontecer. 

Por sua vez, este modo de pensar e de viver as relações é sustentado pela disseminação de um outro discurso que tendemos não só a manter de forma acrítica, mas também a perseguir como fonte de validação: o do amor romântico. Dado que o amor romântico se caracteriza pelo amor domesticado e por uma sexualidade contida, não é de estranhar que a reprovação moral da prática sexual dissociada do sentimento amoroso, e o incitamento à monogamia sejam duas das disposições que mais frequentemente se lhe encontrem associadas. 

A monogamia não é apenas uma prática, mas sim um sistema, uma forma de pensar: é uma superestrutura, também de natureza sócio-política, religiosa e jurídica, que determina o que a Ocidente chamamos de vida privada, e a maneira de organizarmos as nossas vivências afetivas e afetivo-sexuais. A verdade é que não há evidências acerca da naturalidade da monogamia. Contrariamente, há diversos indícios nos estudos evolucionistas de uma inclinação dos seres humanos a terem múltiplos/as parceiros/as sexuais. 

Ainda assim, frequentemente as relações não-monogâmicas consensuais (como o poliamor, as relações abertas, os amigos-com-benefícios, ou a dinâmica da promiscuidade) são percebidas como relações negativas, irresponsáveis, superficiais e de baixa qualidade, sendo muitas vezes associadas à inferioridade moral. Tais estigmas resultam numa patologização e marginalização das não-monogamias consensuais – ´é doentio’, ‘é antinatural’, ‘é pecaminoso’, é ‘perverso’ – sem fundamentação necessária.  

Por um lado, é da responsabilidade de cada casal definir as suas regras de entendimento – seja em registo aberto ou fechado. Sabe-se, porém, é que partilhar desejos por outras pessoas quando se está numa relação monogâmica, ainda que o compromisso de exclusividade não tenha sido infringido, pode levar a reações hostis e incompreensíveis: o que contribui para que a grande maioria das pessoas que deseja experienciar a não monogamia opte pela via da não-consensualidade, ou seja, da traição, em vez de propor uma renogociação dos acordos conjugais no que diz respeito à exclusividade afetiva e/ou sexual.

Também nos casais monogâmicos há momentos em que a amorosidade parece não conseguir espaço para acolher devidamente a efervescência sexual. Muitas vezes, o peso do recato faz com que o assunto seja complicado e de difícil discussão, por trazer receios e vergonha.

Em ambos os casos, costumo propor aos/às clientes uma reflexão acerca da vida de casal, fazendo um levantamento histórico que permita entender como têm vindo a gerir a sua comunicação e gestão de problemas emocionais.

Por outro lado, o sexo casual é uma forma saudável de satisfazer desejos sexuais quando há consenso a respeito das expectativas sobre o ato. O grande desafio está justamente em ter a consciência de que não serão criados vínculos afetivos, mesmo que a experiência seja boa.

Independentemente do registo relacional em que se verifique, quando se fala em sexo percebe-se bem como o culto dos sentidos continua a ser temido e condenado. A mesma ordem social que apoia a monogamia, tem medo da paixão, desconfia de tudo quanto a aproxime da animalidade, do ignominioso, do ingovernável, do vulnerabilizante. Quando o medo se nos torna intolerável, tentamos submeter os sentidos pela abstinência, pelo silêncio, e pela flagelação: espartilhamos o sexo através de expectativas sociais, frequentemente sancionatórias, que ditam como nos devemos sentir, pensar e como devemos agir. A liberdade, que é por natureza autónoma, ao identificar-se com a bondade ou com a perfeição, dilui-se. O que equivale a amputar parte da nossa constituição essencial. E é como sintomas de desintegração que depois surgem experiências angustiantes de culpa, de vergonha, fobias, desejos disruptivos, sentimentos de indiferença e até aversão ao sexo. 

O sexo é um recreio de adultos – desde que não envolva destruição ou constrangimento das partes envolvidas, é jogo e nada nele tem por que ser condenado ou censurado. 

A promiscuidade não tem de todo por que ser patologizada, mas diria tornar-se preocupante quando, durante a troca de parceiros/as sexuais, alguém é incapaz de estabelecer vínculos afetivos com o Outro. Com efeito, há quem procure uma satisfação sexual/erótica em situações de relativo anonimato, com o objetivo de realizar os seus impulsos e as suas fantasias mais primitivas, seja com homens ou mulheres, obedecendo a outras razões inconscientes como o narcisismo patológico, o medo do abandono e da solidão, a baixa tolerância a frustrações, o predomínio de uma agressividade destrutiva, sentimentos de culpa e baixa autoestima. Nestes casos, a pessoa procurada para satisfação sexual/erótica não existe como pessoa, mas como objeto e instrumento de prazer. É facilmente substituível e este é um dos objetivos do ‘eterno desapego’, levando a uma sistemática desinteriorização psíquica. 

Percebe-se que homens e mulheres que são incapazes de se relacionar espontânea e prazenteiramente com os/as parceiros/as legítimos/as se sentem bem e capazes de usufruírem livremente da sua sexualidade com um/a amante. Nestes casos, não raro, é a capacidade de se vincular que está danificada – a pessoa não consegue entregar-se ao/à é ao/à parceiro/a.

O aspeto mais problemático de todas estas possibilidades relacionais é talvez a falta de autenticidade que repassa cada decisão que se tome. Muitas são as pessoas que fingem amar para conseguir ter sexo e muitas as que permitem o sexo para conseguirem amor. Resultado: ninguém tem o que verdadeiramente quer. 

Tudo o que nos negue uma afirmação pessoal de autenticidade limita a nossa felicidade, o nosso bem-estar e o nosso sentido de realização. Em muitos casos, seja ele expresso por bloqueios desenvolvimentais ou sintomas psicopatológicos, o sofrimento surge associado à pressão dilemática de escolher entre o que genuinamente somos ou agradar às idealizações que nos incutem, levando a escolhas não autênticas. É de viver em função de uma identidade que não corresponde ao seu presente, cada vez mais afastada da possibilidade de autoafirmação e da capacidade de fruição da vida, que uma pessoa adoece. Amiúde digo então que ninguém subsiste parcialmente, que o ‘Eu’ não entende de metades. Independentemente da modalidade relacional que queira fruir, quem não se permite inteiro, não se pode dar na sua inteireza.  

É por conta da estrutura monogâmica que entendemos a solidão a partir da vivência ou não de relações afetivo-sexuais – o nosso imaginário só valida relações se estas forem afetivo-sexuais, quando existe todo um mundo de possibilidades dos vínculos afetivos, e até mesmo de vivências sexuais, para além dos ideais mono-cis-hetero-centrados do amor romântico.

Além disso, por muita felicidade que prometa trazer, é o amor romântico que as mais das vezes se encontra na base de relações tóxicas, de dependência emocional e violência, já que os seus mitos tendem a normalizar e a naturalizar ações destrutivas. 

Mitos como: “O amor pode fazer tudo” – levando à crença de que as pessoas podem mudar por amor (o que, não raro, nos leva a aceitar e a tolerar comportamentos claramente ofensivos do/a companheiro/a, na esperança de que em algum momento eles mudem); à crença de que o amor pode superar todos os obstáculos que surgem numa relação (pode causar dificuldades quando usado como desculpa para não mudar certos comportamentos ou atitudes ou interpretar mal os conflitos do casal); à normalização do conflito; à crença na compatibilidade entre o amor e o abuso (considerando que amar é compatível com ferir ou agredir); e à crença de que o amor tudo perdoa/suporta (um dos argumentos mais frequentemente usados na manipulação da vontade do/a parceiro/a é este: “se não me perdoas é porque, no fundo, não me amas”).

Mitos como “O verdadeiro amor é predestinado” – levando à crença de que escolhemos o/a parceiro/a que “predestinamos” e que, no fundo, é a única escolha possível; à crença de complementaridade (que faz com que só contemplemos a felicidade e o sentido de realização com o/a parceiro/a); à ideia de raciocínio emocional (ou seja, de que quando uma pessoa está apaixonada por outra, é porque existe uma “química especial” que, sendo especificamente direcionada, a torna na “nossa alma gémea”); e à crença de que existe apenas um amor “verdadeiro” na vida.

E ainda a mitos como o de que “o amor é posse e exclusividade” – levando à crença matrimonial (considera-se que o amor deve necessariamente levar à união do casamento civil ou religioso); à crença de que o ciúme é sinal de amor (ou seja, que está ligado à conceção do amor como posse do Outro); e à crença de fidelidade e de exclusividade.

“Na melhor das hipóteses” diz Phillips “a monogamia pode ser o desejo de encontrar alguém com quem morrer; na pior, é uma cura para os terrores de estar vivo. Um e outro objetivo se confundem facilmente”. Como escrevi noutro post, a solidão é mais a distância que nos separa de nós mesmos/as, do que a distância que nos separa dos outros. Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a procurar-nos noutras metades. E, claro, a sentirmo-nos permanentemente incompletos/as e insatisfeitos/as. Para viver plenamente em relação, é necessário, primeiro ser-se um/a. 

Com estima,

Carlos Marinho

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