Avançar para o conteúdo principal

O AMOR EM TEMPOS DE CONSUMISMO

É para ter e mostrar? É para fazer parte de algo maior? É para ser feliz? Afinal: por que é que consumimos? A verdade é que mais do que um objeto, os ‘bens de consumo’ trazem a reboque uma certa carga simbólica e toda uma série de complexas mensagens. É que o consumo não é só um processo comercial de compra e venda – antes, é uma ação ativa de relação com os objetos, com o grupo e com o mundo, tornando-se uma atividade de manipulação sistemática de significados, o que orienta (pronto, vou dizer: o que manipula) as probabilidades de escolha e de conduta individuais e, consequentemente societais. 

O consumidor da sociedade de consumo (a que vivemos hoje) é completamente diferente dos consumidores das sociedades anteriores. O dilema mais contemporâneo é agora este: "será que é necessário consumir para viver ou estará o homem a viver para poder consumir?". Será que ainda somos capazes, e sentimos a necessidade, de distinguir aquele que vive daquele que consome? Diferentemente de ‘consumo’ – uma característica e uma ocupação dos seres humanos como indivíduos –, o ‘consumismo’ é já um atributo da sociedade. Para isso, é preciso que as pessoas tenham a capacidade de querer – de desejar! Se o consumo é característico dos seres humanos como indivíduos, o consumismo é atributo da sociedade, que manipula as escolhas e preferências individuais. Trata-se da reciclagem das vontades, dos desejos e dos anseios da humanidade, transformados em mola propulsora da sociedade. 

Para o que nos importa hoje, percebe-se é que o consumismo se apoderou também das relações interpessoais. 

Há quase 20 anos, o sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o hoje amplamente difundido termo “amor líquido” para retratar o modo como nos relacionamos. Este conceito de amor é pensado a partir da lógica dos bens de consumo: a relação só é preservada enquanto trouxer satisfação e utilidade instantânea, se não, é rapidamente substituída por outra. É um amor frágil que paira sob a eliminação imediatista e a ansiedade permanente e que dificilmente constrói relações duradouras. Isso é reflexo da sociedade capitalista, que valoriza o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, resultados que não exijam esforços prolongados e receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro.

É provável que, se o/a leitor/a se relacionou nos últimos tempos, tenha sentido pelo menos um pequeno travo de ‘amor líquido’: mais quantidade do que qualidade nos encontros, relações que terminam tão rapidamente quanto começam, e términos relacionais por ‘ghosting’. Já para não dizer que o que nos desagrada, ‘arrastamos o dedo para a esquerda’ e descartamos. Estas possibilidades têm como efeito exacerbar o individualismo e a impressão de que o mundo gira à volta do nosso umbigo, diminuindo a nossa (tão cara!) resistência à frustração. As relações tornam-se superficiais e objetificadas.

Este é um pouco o paradoxo que vivemos: por um lado, ansiamos por conexões reais e encontros significativos, e propomo-nos a procuras incessantes. Por outro lado, queremos que o Outro nos descubra de forma pronta, totalmente compatível conosco, ficando com pouca paciência para negociar as diferenças e enfrentar as frustrações inerentes a esse processo…

Os caminhos para transformar a situação envolvem uma tomada de consciência individual e coletiva sobre o cenário atual. Isto passa por conhecer as próprias vontades, dores e construções sobre o amor, até para entender o que vem de dentro e o que é influência da cultura e do sistema. Haverá ainda espaço para a ética e a amabilidade? Sim, os nossos desejos são complexos e mutáveis, mas podemos educar-nos para uma maior atenção em relação ao Outro. Que opinam? 

Boas reflexões!

Com estima,

Carlos Marinho

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA

FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM?  A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. " Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa " justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas  feridas emocionais . [Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferid...

O DESAFIO DA (RE)CONEXÃO COM O 'SELF' [MANUAL DE BOLSO - Versão 2024]

... VAZIO? DESÂNIMO? SOLIDÃO? FALTA DE FOCO? ANGÚSTIA? ... ´ Muitas destas queixas são queixas típicas do estado de  crise da subjetividade pessoal. E o que quer isto dizer? Bem, comumente, este estado de crise decorre da falta de investimento na nossa " vida interior " . Quando esta falta de investimento leva ao afastamento e eventual  desconexão com o nosso 'Self' , debilitando-o, é gerado intenso mal-estar. Neste caso, a solução está na libertação do 'Eu reprimido' , ou seja, no processo de individuação   e  emancipação pessoal . Por outro lado, pessoas que estão nos estágios iniciais do processo de emancipação pessoal , e que percebem quão isoladas estão em relação à maioria, poderão também experimentar mal-estar sob a forma destas queixas: acontece que o que faz mover o mundo não as faz mover mais. Aos perceberem de forma mais lúcida a crise da subjetividade atual, sentem-se alienadas da cultura ao seu redor. Neste caso, a solução está na resistência às...

ENTENDER PARA SUPERAR: OS DESAFIOS DO NARCISISMO PATOLÓGICO

SOMOS TODOS/AS NARCISISTAS? Sim!  Comecemos por dizer que o que caracteriza o narcisismo é o  investimento da libido na nossa própria imagem .  Todos/as nós possuímos uma energia vital que pode ser investida tanto nos outros, como na nossa própria imagem - a essa 'energia' chamamos de " libido ". Com efeito, é impossível que pelo menos uma parcela da nossa energia vital não seja investida na nossa própria imagem , por isso dizemos que o narcisismo é uma condição básica da estrutura da subjetividade humana ,  transversal a todos os seres humanos .  Para entendermos as "complicações narcísicas" que podem afetar o nosso comportamento, nomeadamente o que consideramos " narcisismo patológico (ou perverso) ", devemos começar pelo início da vida, e entender a formação do narcisismo desde a sua raiz ...  A VIDA COMEÇA NO PARAÍSO (ou SOBRE O NARCISISMO PRIMÁRIO ): No início da vida, o bebé não percebe ainda a realidade externa , não está ainda capaz de re...