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A JUVENTUDE COMO "EFEITO CINDERELA": APONTAMENTOS PARA UMA VELHICE SAUDÁVEL

Digam-me que não sou o único a reparar que o padrão de beleza atual é o de um corpo impossível de existir naturalmente. Estaremos como adictos/as, viciados/as na ilusão de paralisar a chegada da velhice?

Por muito aversiva que seja a experiência, adiantará lembrar que é um braço-de-ferro inglório?, que não podemos nunca ganhá-lo? É que independentemente da estrada que sigamos, o sofrimento psíquico há-de sempre esperar-nos ao fim: quer continuemos a negar a nossa transitoriedade humana, quer renunciemos às tentações narcísicas que nos empurram para a idealização.

Se esta idealização é um contrassenso que debilita o humano em nós, quanto mais diluirmos nas veias a cocaína dos seus imperativos, mais desencontrados/as nos faremos da nossa própria autenticidade, mais nos expropriaremos da nossa identidade – nestes moldes, sem a necessária coincidência entre o que somos e o que desejamos ser, não poderemos nunca sentir a paz que baseia a felicidade genuína. 

Hoje, vive-se o corpo como uma ameaça permanente – a ameaça da transitoriedade, a ameaça da finitude – e, para nos securizarmos, para securizarmos os nossos sonhos de pertença, de amor e de glória eternos, não poupamos esforços a vigiá-lo e controlá-lo. Mas e se parte dessa obsessão de controlo, aplicada compensatoriamente ao corpo, for apenas uma fuga ao horror do vazio e do sofrimento? Mas o vazio e o sofrimento também fazem parte da totalidade. 

Nada nem ninguém poderá durar eternamente. Pese os muitos avanços científicos, a juventude e os seus encantos terão sempre a duração de um efeito Cinderela: não há make-up que nos cubra a inevitabilidade do envelhecimento. Bem negociado, o narcisismo alcandora-nos para outra visão, abre-nos ao reconhecimento de que a beleza é, e sempre foi, toda ela interna, toda ela nossa. Ao invés, quanto mais implacável for a sua força, mais espessa se fará a armadura com que revestimos a nossa vulnerabilidade. Se não superarmos o narcisismo, o nosso amor-próprio transforma-se em autoaversão. Consequentemente, tenderemos a evitar as relações. E aí perdemos tudo – aí perdemos o mundo, perdemos a paixão.

Superar o narcisismo é, possivelmente, um dos mais complexos desafios da vida. Fazê-lo implica o reconhecimento da nossa transitoriedade, o acolhimento amenizado do nosso declínio para a velhice, e a aceitação da nossa finitude. A maturidade está em enfrentar, sem polémicas de subvalorização ou de engrandecimento, que o crescimento é um itinerário de perdas. 

Passamos a vida a despedir-nos. A despedir-nos das nossas presunções infantis. Fazemos birra quando as queremos preservar contra as ordenações da natureza. A birra é apenas um empate estratégico. Permite-nos adiar, temporariamente, o confronto com a falência da nossa presumida grandiosidade oceânica. Dói lembrar que não domamos a vida. Dói reconhecer que participamos tão pouco do comando das suas rédeas.

Por outro lado, quando sabemos que tem data de término, uma experiência tende a tornar-se especial. Este, em muito poucas palavras, é o dom da morte. 

A vida não teria nexo sem a sua finitude. É a morte que faz da vida uma experiência a absorver e guardar. E é por isso que a morte deve ser aceite. As mães morrem, os filhos crescem, os irmãos desiludem, os amigos afastam-se. É isso que nos ancora a um entendimento real das coisas. A dor da perda é afinal um colateral arbitrário: pois a vida é fundamentalmente neutra. Somos nós quem a colora com o garrido das nossas diferentes emoções. De igual forma, um corpo que não aceita a ação do tempo, que ignora as particularidades da sua unicidade, que se esquive à morte, que faz da perfeição uma condição essencial para ser feliz, é um corpo sem significado porque não é mais o veículo do gozo das sensações: serve unicamente o propósito de ser visto, de ser usado para consumo, como a figueira-do-inferno que dá cheiro mas não providencia suco – é um corpo à deriva, um corpo sem vida. 

A angústia do nosso aniquilamento é a da nossa própria impotência contra a natureza. Uma impotência que muitos/as tentam contrariar com métricas compensatórias, com artifícios vãos, que tantos/as tentam esculpir pelo cinzel das cirurgias plásticas – uma tirania de ilusões que impõe ao corpo, na tentativa de se esquivarem ao envelhecimento e à morte, porque para o ideal não há lugar para semelhantes precariedades. Um ideal que o tempo, por imperativo natural, fará cada vez mais distante, cada vez mais inacessível e, portanto, gerador de uma angústia cada vez maior. 

O vilão não é o corpo. Talvez estejamos a incorrer uma boa e admirável força de batalha a partir da nossa libido narcísica, sim, mas contra o inimigo errado. Por muito que as imagens e expectativas desta ‘cultura do superficial’ nos queiram convencer do contrário, o corpo não tem culpa do tempo que passa – e devemos inocentá-lo desse crime. Porque pura e simplesmente não há qualquer crime a ser chamado à pedra. Devemos escolher melhor as nossas batalhas – devemos escolher melhor o nosso sofrimento. 

Um leva-nos às dores cíclicas de Prometeu, o outro oferece-nos, em potência, a capacidade de nos confrontarmos com o nosso vazio, com a nossa transiência: mas essa é a porta de saída do loop narcísico, esse é o caminho para a verdadeira felicidade. Reapoderarmo-nos do nosso corpo, rematerializá-lo, devolvê-lo ao real. 

Quando oiço um/a cliente dizer que não gosta do “corpo que tem”, sei que está a assumi-lo como um objeto de propriedade. E ao fazê-lo, a externalizá-lo de si mesmo/a. Lembro então que ele/a não ‘tem’ um corpo – que ele/a ‘é’ um corpo, também. Incito a que deixe de se comparar a uma idealização de si mesmo/a; que deixe de comparar o seu interior à exterioridade dos outros. Explico que tem o poder de criar a sua própria definição de Beleza: que se quer ser bonito/a não é sobre a beleza – como elemento concreto – que deve trabalhar, mas sim sobre os parâmetros de que se serve para defini-la.

Só há uma forma de consegui-lo – integrando estes percebidos opostos: a juventude e a velhice. A beleza decorre da ligação vital com o si-mesmo, e para esta ligação ser total, a relação com o tempo deverá ser harmonizada num contínuo. É esta imagem de união que nos pode aproximar de uma relação mais adequada com o corpo. Só quem tem consciência do seu envelhecimento, e o protege como tal, estará capaz de respeitar a sua natureza: e isto é a vida a ser vida. 

Permitirmo-nos a intensidade da finitude, sem minar a nossa saúde física ou mental – até à última casa das consequências: deixar os espartilhos tirânicos com que queremos controlá-lo, desapegarmo-nos das reações reprovadoras dos outros para definirmos o nosso próprio ser. Não permitir que o medo nos governe. Desprendermo-nos. Sermos, se assim for necessário, anticlássicos/as, como Giulio Carlo Argan – como um quadro de Kandinsky ou de Miró. Erguermos bandeiras à contemporaneidade. Sermos contemporâneos/as de nós mesmos/as. Prepararmos uma velhice mais acolhedora e menos aversiva, que não nos faça recear mas aceitar o crescimento.  

Não precisamos de encarnar uma produção clássica, não precisa de nos reduzir a uma equação harmónico-material e visual para sermos felizes. Gosto de pensar que o nosso ideal de beleza não está numa proporção áurea mas num fractal. [Sabe o que são? Os fractais são figuras geométricas não tradicionais, com aspeto caótico mas que estão presentes na natureza. Embora fujam do padrão convencional da simetria, são figuras belas pelo seu aspeto caótico e com detalhes infinitamente semelhantes. Ao inspecionarmos cada detalhe de um fractal, percebemos que esse detalhe é igual à figura original. Também nós, humanos, somos compostos de infinitas imperfeições – mesmo que as partes não sejam iguais entre si, todas elas se juntam para criar um só, belo e caótico]. Precisamos é de ser felizes para redescobrirmos a nossa real beleza. 

É este desprendimento cuidadoso que nos mantém jovens. A juventude é isso mesmo: a atitude interior de paixão pela transitoriedade, a irreverência dos riscos que fazê-lo comporta. Nada nos envelhece mais do que o medo. É contra ele que devemos esporear o nosso cavalo, e ir de lança erguida para diante. Não há amor se se vive em isolamento catatónico. Permitamo-nos cair, como o rei de Tiro, do pedestal em que colocamos a sua grandiosidade defensiva. Saibamos descer destes tão subidos Himalaias – cá para baixo, para junto dos humanos. Enrodilhada que está nos seus simulacros, a sociedade não vai alterar nenhuma exigência estética: este tópico está além de qualquer possível negociação. Sagremo-nos a nós mesmos/as como somos – assim, como mais ninguém é. 

Permitamo-nos diminuir essa ansiedade para agradar ou sermos desejados/as. Pode que nunca o sejamos, ou que nunca o sejamos imediatamente. Não é isso que nos torna menos dignos/as ou merecedores/as de afeto. O caminho para a felicidade é um de aceitação sem polémicas face ao que não podemos mudar. É isto que nos traz maturidade, é isto que nos garante autonomia. 

Há algo de profundamente admirável na fuga à autocomiseração: há uma simpatia humana que abre caminhos para o amor, mesmo que não sexual. Tantas e tão intensas são as possíveis relações que essa simpatia permite – é tão bonito o romance entre quem se dá na sua precariedade: é tão real. Ninguém consegue individuar-se no alto dos Himalaias. Aqui somos finitos/as, mas estamos todos/as no mesmo patamar de humanidade. É aqui em baixo, aos pés dos Himalaias, que o Amor floresce – não nas frias altitudes em que a ilusão de perfeição nos congela o afeto. Que opinam?

Com estima,

Carlos Marinho

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