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ACEITAÇÃO DA DIFERENÇA DO OUTRO: NOTAS PARA UM MANUAL DO AMOR

Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos” [Bernardo Soares in ‘O Livro do Desassossego’]

Um dia, num ‘Manual de Amor’ ainda por escrever, encontrar-se-á – estou certo – uma breve passagem sobre como a diferença do Outro nos incomoda quando destoa da idealização que dele/a fazemos. A admissão de não se coadunar com os nossos desejos ou necessidades, fá-lo/a imperfeito (às vezes, ameaçador) aos olhos do nosso umbiguismo. Frequentemente, quando o Outro não age segundo o nosso interesse, tendemos a levar as suas ações ‘para o lado pessoal’, e atribuímos-lhe a intenção danosa de nos atingir/magoar – quando o Outro não faz mais do que agir como sabe, e consegue agir. (Por vezes, a fantasia que colocamos na idealização do Outro é tão desmesurável (tão ansiosa) que chegamos a desejar inglórias impossibilidades como a incondicionalidade do seu amor, ou ao da sua imortalidade. E fazemos grandes birras contra a nossa finitude). 

Há que reter isto: a incompreensão que demonstramos face à individualidade do Outro é um caminho prometido à dor. Depositamos expectativas para logo em seguida conhecermos a frustração: não entendemos a maneira de amar do Outro, não paramos para pensar que o Outro pode ter o mesmo sentimento e a mesma deceção – porque também ele/a se sente incompreendido/a, e não amado/a como gostaria/precisa de ser –, e assim queimamos uma ponte relacional, votando-nos à solidão e ao esvaziamento interior. 

Cada um/a tem a sua forma de sentir e demonstrar amor, com toda a unicidade da sua semântica. O mal é que raramente nos demoramos a consultar o dicionário do Outro para perceber como está organizada a sua experiência sentimental e afetiva. Tiramos de letra que somos todos/as iguais, que damos da mesma maneira, que recebemos da mesma maneira. Quantos de nós conseguimos cumprir a responsabilidade de nos educarmos uns aos outros sobre como queremos e precisamos de ser tratados/as?

No fundo, não são as nossas diferenças que nos dividem. É a nossa incapacidade de reconhecer, de aceitar e de celebrar essas mesmas diferenças – é a necessidade de sujeitar a compreensão e a agência sobre o mundo e sobre o Outro às proporções do nosso ‘Eu’.

Esta é a intolerância que tende a dececionarmos após um período de paixão – e que, não raro, desemboca em ‘guerras frias’, separações/divórcios, traições e outras frustrações afetivas. Durante o estado de paixão – o ‘estado nascente de enamoramento’ – não atendemos às diferenças: na verdade, elas são componente da atração que nos puxa para a intimidade. Impressionam-nos até ao encanto da novidade se esvair; depois, transformam-se em percebidos defeitos – em percebidos enormes defeitos, impossíveis de compreender e de tolerar. 

A dificuldade que temos, em geral, é de entender que aceitar as diferenças não nos obriga a gostar delas – apenas significa que não temos o direito de tentar mudar o Outro para encaixá-lo/a na cuba dos nossos desígnios. Devemos dar ao Outro a oportunidade de se mostrar na sua autenticidade para enfim percebermos se queremos e/ou conseguimos integrá-lo na nossa vida. Assim como vivemos à procura de ser quem somos, intitulados/as aos nossos sonhos, desejos, gostos, e falibilidades, também as outras pessoas procuram o mesmo.

É esta disposição narcísica que nos orienta para a indiferença, para o preconceito, para a exclusão, para o bullying, para a violência física e psicológica, e outras tantas dinâmicas de anulação, de desrespeito, e de desdignificação do Outro. Não importa o tanto que fazemos para conquistar os outros, se não nos mover a abertura para identificar e acolher, com aceitação, a sua diferença. Quando questionado sobre que fatores destroem o ser humano, Mahatma Gandhi responde que seriam: “um político sem princípios, o prazer sem compromissos, a riqueza sem trabalho, a sabedoria sem caráter, o negócio sem moral, a ciência sem humanidade, e a oração sem caridade”. É importante relativizarmos as nossas percebidas conquistas – desde uma posição social de relevo, a uma cómoda estabilidade financeira, um vasto e diverso conhecimento, um arrojado ‘coming out’… se não trabalharmos a competência do nosso humanismo. Que relação significativa pode alguém construir sem esta virtude?

E porque o contexto interpessoal é passível de se entender como caricatura de um contexto social mais alargado, em tempos que vêem a extrema-direita subir ao poder, não é demais relembrar as palavras de outra publicação: 

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade".

No contexto de um Portugal em crise, tumultuado pelo medo e pela insegurança, temos assistido a manifestações inquietantes de racismo, de populismo, de xenofobia, de homofobia e transfobia, que diariamente atacam a democracia, o multiculturalismo, a justiça social, a tolerância, a inclusão, a igualdade entre géneros, a liberdade de expressão e o debate aberto.

Afirmando-se como estrénua defensora de valores humanistas, da solidariedade, da inclusão e do mútuo apoio, aproveito o resultado destas legislativas para declarar peremptória a reprovação e distanciamento da CresSendo de quaisquer forças antidemocráticas, insurgindo-se contra todas as formas passíveis de invalidar os princípios da tolerância e da dignidade humanas.

Para sobrevivermos aos tempos de crise deveremos emergir mais unidos/as do que nunca, sobretudo à batuta de uma reeducação afetiva que nos leve a co-construir uma sociedade assente na responsabilidade social, uma sociedade mais solidária e menos solitária, onde cada pessoa seja singular, mas nunca só.

Boas reflexões!

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