Costumo dizer que "os pais dão a vida. E depois dão os ovos, o leite e a manteiga. Mas para fazermos o bolo da nossa completude, vamos precisar de uma tigela, vamos precisar de açúcar, de sal, de fermento - é caminhando que vamos encontrando todos os ingredientes necessários". Este é o percurso do/a adulto/a. Os pais não são perfeitos - dão o que sabem e podem e conseguem. Às vezes será só a tigela (e até a tigela, muitas vezes, está partida ou furada); às vezes, será só um pouco de margarina ou uma peneira entortada. Não temos de partir de casa com todos os ingredientes. Acreditar neste mito é lesivo ao nosso crescimento. Ao sairmos da relação com os pais, saímos da "lei da ordem" (tomamos o que nos é dado); agora, entramos na "lei do equilíbrio": ou seja, na nossa jornada, vamos trocando ingredientes com o mundo: "Tenho aqui um pouco de açúcar que me deram em casa, mas não havia fermento. Tens aí fermento que queiras trocar pelo meu açúcar?".
Quando estagnam na queixa (há-as que ficam três ou quatro anos em terapia só no registo da queixa em relação ao que os pais fizeram e não fizeram), as pessoas não transitam para a "lei do equilíbrio", e começam a exigir dos outros (do marido, da esposa, do amigo, do chefe, do Estado) a tigela e o ovo e o leite e a farinha, e tudo o mais que faltou. Depositam neles toda a carência sentida, querem que eles façam as vezes dos pais, e chegam a tornar-se agressivas contra quem não cede a assumir essa função.
Na posição infantil, a "lei do equilíbrio" não é entendida, a dádiva não é entendida: passamos a responsabilidade da nossa satisfação para o Outro, o que é um fator de extremo desgaste para qualquer relação. Devemos sempre libertar os outros da obrigação de nos fazerem felizes.
É na "lei do equilíbrio" que nos curamos se aprendermos a fazer as trocas. Para isso, precisamos de sair da posição de queixa, saber agradecer a vida e a tigela ou a peneira que recebemos, e assumir que o resto é conosco, individualmente. Para consegui-lo, devemos investir no autoconhecimento. Começarmos, por exemplo, por reconhecer a nossa posição infantil; por reconhecer que o 'design humano' é cheio de traumas; que os pais não são perfeitos; que não saímos de casa com todos os ingredientes necessários (que também os pais não partiram das suas origens com todos os ingredientes, nem os avós, nem os bisavós, e que cada geração fez o que conseguiu). Ter esta noção desenvolve a nossa capacidade de compreensão, de empatia e de amorosidade em relação aos outros - percebemos que não há por que levar para o lado pessoal o facto de a nossa mãe nos ter dado apenas um ovo: não havia falta de amor, só não havia mais do que um ovo para nós. Aceitá-lo é apanágio de uma posição adulta.
O presente é o momento ideal para depurarmos o nosso passado e desintoxicarmos a nossa vida afetiva. Todos/as nós temos, em maior ou em menor grau, ressentimentos relativamente à nossa infância. Acontece que nalguns casos o negativo supera o positivo e, portanto, a família transforma-se numa rede complexa de relações, vínculos e sentimentos ambivalentes. Há figuras parentais que não são sinónimo de alegria, identidade, união, lealdade, respeito, amor e fidelidade. A elaboração dos vínculos com os nossos pais longe desse ideal transforma-nos em caldeirões em ebulição, génese de dinâmicas complexas e nocivas.
“Infância é destino”, diria Freud; mas o certo é que não podemos viver indefesos toda a nossa vida sob a desculpa de que tivemos uma infância complicada e longe de ser ‘a ideal’. Devemos interiorizar a mensagem de que não importa o quão destrutivas tenham sido as nossas relações entre pais e filhos: as perspectivas sobre o nosso futuro só a nós nos dizem respeito – é ao assumirmos essa responsabilidade que abrimos portas para o nosso melhor futuro possível.
Ao final do dia, é sempre e só à nossa própria consciência que devemos todas as explicações fundamentais. Ou nos refugiamos na atribuição de culpas aos outros – e cristalizamos assim a nossa linha de desenvolvimento na passividade de vítimas; ou assumimos a nossa responsabilidade – e, a despeito do sofrimento que fazê-lo inevitavelmente acarreta, permitimo-nos fruir do poder de autorar a nossa própria história, e abrir portas para a nossa evolução pessoal. Frustrações afetivas passadas, vividas na relação com os pais ou com figuras educativas de referência, podem deixar rombos homéricos na nossa vida. Verdade. E factos históricos não podem ser mudados. Mas existe sempre a possibilidade de reelaborarmos o vazio que eles nos causaram e de (re)construirmos o futuro da nossa forma de acolher e de dar afeto.Dá trabalho e é assustador, sim. Mais fácil é ficar-se na zona de conforto: nessa posição infantil onde, embirrados/as, resistimos ao avanço dos anos; onde resistimos à quebra da grande idealização que desenvolvemos desde crianças – a de que os pais devem existir ao talhe exato das nossas necessidades, devem saber satisfazer todos os nossos desejos, devem conseguir assumir o controlo e proteger-nos de toda as adversidades da vida. A verdade, porém, é que também eles são misericordiosamente humanos, afetados por traumas e carências afetivas vividas no contexto das suas respetivas famílias de origem. A verdade é que ninguém é perfeito/a – que se faz o que se pode, que se faz o que se sabe. E tantas vezes não sabemos que não sabemos.
Embirrar é apenas empatarmo-nos no mundo da infância: não é isso que vai restaurar a nossa carência afetiva, não é isso que nos vai reparar o sentimento de injustiça. A vida não nos deve nada. Ela é fundamentalmente neutra: somos nós quem, através da nossa percepção e agência, colocamos os pesos nos pratos que escolhemos. Pelo tanto que a vida tem ainda de bonito e grandioso para nos dar, invistamos neste crescimento. Claro que é possível. Claro que consegue.Com estima,
Carlos Marinho
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