Não existe um tipo clínico único de toxicómano: cada um envereda e intoxica-se por motivos particulares. A toxicomania, em si mesma, não é uma doença, mas sim um sintoma – um sintoma que pode estar a tentar resolver problemas diferentes para cada um/a. Recordo a expressão grega «farmacum» como designativa da poção que, em certas doses, funciona como remédio, mas que em doses excessivas, se torna venenosa. O toxicómano fica a transitar entre estes limites: do remédio ao veneno.
O consumo é um constante teste de resistência: um teste à sua omnipotência imaginária – um sentimento de invulnerabilidade perante tudo aquilo que seja mais aversivo para si na realidade que o contextualiza. Este sentimento produz, como contrapartida, uma espécie de um namoro com a morte. No exato momento em que se droga, é como se se fundisse à droga, e nada lhe falta. É como se conseguisse abolir, no encontro com esse objeto perfeito para o seu gozo, o seu status como ‘sujeito desejante’, ou seja, um ser movido pelo desejo, movido pelas forças do seu inconsciente, em conflito, dividido, que desconhece dimensões de si mesmo/a, que precisa de pensar e simbolizar, e que precisa dos outros – aquilo, no fundo, que nos define como seres humanos.
Na toxicomania, a pessoa desaparece momentaneamente – não precisa de falar nem de pensar, todos os seus conflitos, inerentes à natureza humana, ficam em suspenso; deixa apenas um corpo que funciona, que acolhe a droga, que produz efeitos apaziguadores daquilo que é, afinal, a dor de viver (consigo mesmo/a, com as suas dúvidas, com as insuficiências, com os seus desejos). Nesse momento, apaga a sua subjetividade. É um corpo-organismo, em funcionamento, sem subjetividade. Mas trata-se de um efeito momentâneo. A angústia volta; o sentimento de falta volta também. O vício começa aqui: na necessidade de apagar novamente a falta. Quanto maior for a angústia, maior se faz o imperativo de voltar ao consumo.
Um outro efeito é o efeito de completude. O consumo faz desaparecer a descontinuidade entre a pessoa e aquilo que, em psicanálise chamamos metaforicamente de “o Grande Outro”: qualquer entidade imaginária que é protetora, que securiza, que protege, que é poderosa – como, por exemplo, a mãe da primeira infância: aquela que cuida, ampara, que mais ou menos sabe tudo o que é necessário para aplacar a fome, sede, frio, e desamparo da criança. Mesmo quando nos diferenciamos da 'mãe', e vivemos a nossa vida de forma independente, mentalmente recorremos muito à fantasia de que alguém vai cuidar de nós, nos vai orientar, nos vai resolver o desejo por nós (pode ser Deus, pode ser uma figura de autoridade, como um professor ou mestre, um amor).
A determinada altura da vida, particularmente em situações mais difíceis, percebemos que não existe ninguém a cuidar de nós, a conhecer a nossa verdade e a guiar-nos os passos. Acreditar num Outro que vele por nós é já uma espécie de escapismo: de não termos de enfrentar a dura realidade que, no limite, é um pouco regida pela máxima “cada um/a por si” – cada um/a vai errar por si, cada um/a vai ter de resolver o enigma do seu próprio desejo por si, cada um/a vai ter de suprir as suas próprias necessidades. Ainda assim, inventamos formas de achar que essa possibilidade está ao nosso alcance.
Um dos efeitos da droga é fazer desaparecer o que nos separa desta figura imaginária de total proteção. É quase voltar a ser um ‘bebé no colo da mãe’. Às vezes, porém, acontece o contrário: alguns toxicómanos querem drogar-se para fugir dessa relação perfeita – mas tão opressiva e sufocante – que imaginam ter-se instalado nas suas vidas, e que os impedem de alcançar a liberdade necessária para serem sujeitos separados e autónomos. Algumas relações mãe-filhos/as vão produzir esse efeito. Assim, uns procuram a droga para se ampararem; outros para se detonarem e se afastarem dessa sensação de completude que os sufoca.
Aquilo que recebo em consultório não são toxicómanos, mas sujeitos. Muitas vezes, os/as clientes que consomem drogas apresentam-se como ‘drogados’, pois é mais fácil para eles/as se verem como categorias e não como pessoas singulares, com as suas necessidades e conflitos; a droga antecede-os/as, como se tentasse apagar a sua subjetividade – não tendo de falar por eles/as mesmos/as, de responsabilizar-se por eles/as mesmos/as: a responsabilidade é entregue ao psicólogo, assumindo assim uma posição infantil. Nestes casos, o caminho de cura é longo e nunca isento de grande dificuldade.
Para os toxicómanos, no lugar do simbólico ‘objeto do desejo’ (aquilo que representa o desejo que a todos/as nos move a vida: criativa, social, profissional, relacional, etc.), a droga instala um ‘objeto de satisfação’ – ela torna-se a encarnação representativa do desejo da pessoa, daí tornar-se uma necessidade e, em breve, uma escravidão: “preciso dela, pois só ela é que me completa”.
Quando, em consultório, o sujeito diz: “Eu sou um/a drogado/a”, o que não aparece na sua apresentação é a questão “quem sou eu?”. É apenas um corpo de abstinência à procura do objeto que vai resolver a sua falta. Outra questão que não parece é: o que me falta que faz com que precise de estar constantemente afeto a este objeto para me sentir completo? Aquilo que lhe falta é o que nos falta a todos nós, seres humanos: quase todos nós perdemos, de alguma forma, a nossa completude ao nascer. Somos todos/as faltantes de alguma coisa. Só que nesta necessidade imperativa da droga, o sujeito perde a via de acesso ao seu desejo. Fazemos - entenda-se - muitas coisas com o nosso desejo, embora muitos sejam inconscientes: criamos, pensamos, conversamos, procuramos o Outro, procuramos o nosso prazer, enfrentamos as nossas angústias, resolvemos os nossos conflitos. É como se a droga interditasse o caminho para o reconhecimento do que move a nossa vida.
As drogas evitam termos de lidar com a dor de viver – de saber que a vida é breve, que vamos morrer, que vamos perder quem amamos. Viver é muito bom mas também dói. A droga promete poder apagá-lo.
Vivemos numa cultura que acredita que é possível viver sem doer – que a vida deve ser uma experiência de contínuo prazer, de conquistas e sucesso. Ela não produz “modos de sofrer”. Por exemplo, no Cristianismo, as pessoas aceitam o sofrimento porque acreditam que Deus tem as suas razões para fazer sofrer, porque enfrentando o sofrimento com resignação serão felizes na vida eterna. A religião normaliza o sofrimento: deixamos de sentir-nos bizarros ou loucos – não deixamos de sofrer, mas o sofrimento tem sentido. A corrente do romantismo, no sentido do entendimento da vida como a nossa separação em relação à natureza e a possibilidade de voltarmos a encontrar uma comunhão com o todo, também dá sentido ao sofrimento. Quando a pessoa romântica sofre, ela pensa o sofrimento como tendo algum valor, algum significado. Na nossa cultura, muito hedonista e individualista, o sofrimento deixa-nos numa solidão absoluta, chegando inclusive a criar vergonha de reconhecer que a vida nos dói – “quem é inteligente ou capaz, não sofre: só os fracos cedem”.
A ética protestante que regia a sociedade capitalista de produção do século XIX vinha assente na regra de renunciar ao prazer, sacrificar-se e produzir muito – isto gera um tipo de sujeito: o sujeito reprimido. Quando o eixo da economia passa da produção para o consumo, o imperativo é completamente diferente: merecemos e temos direito ao prazer, não podemos adiá-lo. Mas a instrução, em si, é vazia de sentido. Os imperativos de consumo dirigem-se a todos na sociedade, mas só estão acessíveis a alguns. É aqui que a droga entra como objeto que substitui todas as mercadorias a que as pessoas não têm acesso – a voz que nos dita esta entrega ao consumo e ao prazer pode também vir da imagem da ciência, o médico, o psiquiatra, que oferece a droga para apaziguar a angústia. Da droga psicofarmacológica à droga ilegal, o caminho já está aberto por este ideal de crescimento antidepressivo: a falsa ideia de que o bem-estar é estar livre da subjetividade.
O próprio caminho de cura que a terapia oferece é, por isso mesmo, um assunto que desperta menos interesse nas pessoas: se me posso anestesiar, se posso automatizar as minhas respostas, se posso estar menos deprimido/a ou ansioso/a através dos fármacos, por que hei-de embrenhar-me na complexidade da minha subjetividade e falar em terapia?
Cada vez mais, a criança atual é instrumentalizada pelo mercado e pelos pais neste capitalismo pós-globalização para a aquisição de aptidões e competências (na lógica de um “eu ideal”), ficando com pouca vida interior, pouco tempo de ócio e fantasia, que é o que dá riqueza à nossa humanidade. Já os/as adolescentes são talvez, as maiores VÍTIMAS deste imperativo de gozo que repassa toda a cultura. Estas são as figuras eleitas pelo imaginário da publicidade para as quais se dirigem os apelos ao consumo, pois são os que chegam ao limbo entre a infância e a adultícia, e estão mais susceptíveis. A adolescência é uma época de fragilidade, de insegurança, de algum percebido desamparo interior, e não uma de pleno gozo e alegria, tal como a publicidade a apresenta. Na sua solidão, na sua inadequação, na sua dificuldade em dominar os códigos da vida adulta, no seu medo do futuro, na sua fragilidade, a droga torna-se uma resposta fácil ao problema da inadequação a estes ideais.
Em certos meios sociais, menos protegidos, o consumo de cannabis é uma espécie de ‘rito de iniciação’ da passagem da infância para a adolescência. Ingressar na ‘turma da erva’ é uma forma de beneficiar da promoção de uma identidade grupal (o/a adolescente que se sente mais rejeitado/a, torna-se aceite se consumir com os restantes). Digo que não é tao grave que os/as adolescentes consumam erva, de quando em vez; é grave, sim, que achem que sem ela não aguentem a sua experiência vital – que a transformem na sua razão de ser. Mas a evidência é a de que a adesão se torna mais fácil quando mais esvaziada for a interioridade dos/as jovens.
Gosto por isso de incentivar a valorização das experiências de trocas grupais (bandas de música, militância política, trabalho social), já que estas nos fazem menos sozinhos/as e desamparados/as: obrigam-nos ao treino de não obtermos satisfação imediata. Na nossa cultura individualista e competitiva, que nos isola e nos volta uns com os outros, a satisfação não fica dependente da relação com os nossos semelhantes, mas de um objeto qualquer. A droga é este objeto – um de satisfação imediata.
Que vamos então fazer com os/as nossos/as filhos/as que fumam, que voltam hoje da festa de olhos vermelhos e de boca seca, ressacados do seu 4.20? Decidir que ele/a é um/a toxicómano/a e proibi-lo/a de ir à festa, que não sai com esses amigos, interná-lo/a, mudar de escola? Ou conversar sobre isso, e começar a criar a possibilidade de ele ter uma relação alternativa com a droga, que isso faz parte da vida dele, do grupo e da sociedade, e decidir que destino alternativo, mais saudável, dar ao comportamento de consumo?
Saiba mais em consultório.
Aqui para si.
Carlos Marinho
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