INTRO:
Ao longo dos últimos meses, tem-me impressionado negativamente a elevada frequência com que muitas mulheres, de diferentes idades e ‘bagagens emocionais’, desabafam em consultório, uma e outra vez, a mesma velha e terrível queixa: “OS HOMENS SÃO TODOS IGUAIS: NÃO SE PODE CONFIAR NELES”, sendo que outras não são de todo remissas em afirmar: “OS HOMENS DÃO-ME MEDO, NÃO ME SINTO CONFORTÁVEL JUNTO DELES”.
INSEGURANÇA, DESCONFIANÇA, MEDO e até AVERSÃO FÓBICA são alguns dos estados emocionais que fazem com que estas mulheres vejam as suas relações com o sexo oposto severamente comprometidas – bem como a correta e saudável integração da ‘energia masculina’ no seu próprio Self (uma parte imprescindível do nosso ‘processo de individuação’).
Grande parte do meu trabalho tem consistido em educar e empoderar homens e mulheres a respeito das suas relações, desde a dimensão afetiva à sexual, e há muito que abordar esta questão se me fez pertinente. Diz Freud que "quem ama sofre, quem não ama adoece". Ora o medo é um dos maiores obstáculos ao amor – onde há dificuldade em confiar, há dificuldade em amar; onde há dificuldade em amar, há dificuldade em confiar.
Algo tem de ser feito em relação a isto. Para começar, importa termos em mente que não é possível destrinçar-se a biografia subjetiva de cada um/a de nós das condições sócio-históricas que nos contextualizam. A análise começa a nível social.
1: DO SOCIAL...
Devido às forças patriarcais, androcêntricas e profundamente misóginas que governam ainda a nossa sociedade, facilmente constatamos como, PARA A MAIORIA DAS MULHERES, TER MEDO DOS HOMENS É UMA REALIDADE COMUM. Medo de serem rebaixadas no ambiente de trabalho, medo de serem subestimadas em tudo o que possam fazer, medo de não serem suficientes, medo de serem traídas, medo de serem abusadas. Experiências negativas ou traumáticas com homens – como AGRESSÕES FÍSICAS, ABUSO VERBAL, FÍSICO OU PSICOLÓGICO, NEGLIGÊNCIA, ASSÉDIO SEXUAL OU ESTUPRO –, estão frequentemente na base do medo.
Quantos homens já temeram pela própria vida ao fazer algo tão simples quanto regressar a casa à noite? Quantos têm de se munir de apps de navegação, sprays de gás pimenta ou de canivetes antes de apanharem um táxi sozinhos? Quantos já foram assediados na rua por grupos de homens? Quantos têm de pensar por onde andam, a que horas andam ou que roupa levam vestida com receio de serem violados?
Este medo que assombra as mulheres é o PIOR SINTOMA DO MACHISMO, simplesmente porque ele afeta todos os âmbitos da sua vida. E no âmbito pessoal, claro, o medo faz com que se sintam inseguras em qualquer tipo de relação com o sexo oposto.
É por isso que quando atendo uma mulher, jovem ou adulta, o processo terapêutico NÃO PODE SER APENAS UM VEÍCULO PARA A SUA INDIVIDUAÇÃO, SE NÃO O FOR TAMBÉM – e forçosamente – PARA A SUA EMANCIPAÇÃO. A psicologia é feminista – ou então, não é de todo.
Viver num ambiente onde a maior parte da energia da mulher é drenada na proteção dos próprios corpos contra agressões, onde o mau-olhado da sexualização as penaliza e persegue constantemente, torna-as quase automaticamente desconfiadas de TODOS os homens.
Mas SERÃO “OS HOMENS TODOS IGUAIS”? Decerto, nem todos os homens são estupradores, nem todos são abusadores, nem todos assediamos, nem todos objetificamos, nem todos falamos mal das mulheres, nem todos somos irresponsáveis em casa, nem todos negligenciamos a paternidade, nem todos somos insensíveis, nem todos pensamos com o pénis. NEM TODOS OS HOMENS PODEM SER DIRETAMENTE RESPONSÁVEIS POR ESTAS AGRESSÕES, MAS O PATRIARCADO, UM SISTEMA QUE LHES DÁ PRIVILÉGIOS EM DETRIMENTO DAS MULHERES, É.
A maioria dos homens defende, consciente ou inconscientemente, o patriarcado – e as mulheres (que experimentam de alguma forma o sexismo e a misoginia, seja em casa, no trabalho, na escola, nas ruas ou no supermercado) internalizam, física e psicologicamente este tipo de micro a macro agressões, respondendo com medo.
Confiar é uma NECESSIDADE INSTINTIVA. É um estado psicológico que se caracteriza pela intenção de aceitar a vulnerabilidade, com base em crenças otimistas a respeito das intenções (ou do comportamento) do Outro.
Confiamos a nossa vida, as nossas emoções, a nossa intimidade emocional, o corpo, a alma e tudo o que temos em nós, entregando-o ao Outro com esperança de que este saiba sempre honrar o que de mais íntimo e nobre partilhamos, sendo a confiança central para a entrega genuína, segura e autêntica entre as pessoas.
É possível resgatar um sentido de confiança? E de que dependerá consegui-lo? Podemos dizer com rigor que os homens só são “todos iguais” para MULHERES QUE ESTÃO SOB INFLUÊNCIA DO TRAUMA de uma única relação tóxica? Que os homens só são “todos iguais” para MULHERES QUE NÃO CONSEGUEM ROMPER PADRÕES DISFUNCIONAIS na escolha das suas parcerias? Que os homens só são “todos iguais” para MULHERES QUE COMPARAM A PARCERIA (ATUAL) COM A PARCERIA NEGATIVA DO PASSADO? Estamos a cair na armadilha da generalização, ou estaremos a subvalorizar a força insidiosa do patriarcado?
A história das mulheres com medo de homens não começa aqui. Esta é, na verdade, a história de um lento SUCEDER DE LEGADOS TRANSGERACIONAIS TÓXICOS ao longo do tempo, que encerra em si, a sua própria causa e consequência simultâneas.
Se os homens são EDUCADOS PELA SOCIEDADE A REPRIMIR A EXPRESSÃO EMOCIONAL E AFETIVA no seu perfil de funcionamento, é compreensível que os conteúdos afetivos da paternidade sejam transmitidos aos filhos e filhas com uma carga deficitária – e que quanto mais subtil é a expressão do afeto, mais facilmente duvidamos dele.
Em clínica, sabe-se que muita da insegurança, do medo e da desconfiança em relação aos homens em geral, redundam da real ou percebida AUSÊNCIA OU INDISPONIBILIDADE DA NOSSA PRIMEIRA FIGURA PATERNA (seja o pai ou um substituto) – saiba mais aqui.
2: ...AO PARTICULAR.
Tenho trabalhado com muitas mulheres, filhas adultas, que se sentem abandonadas ou traídas pelo seu pai – curiosamente: não tanto pela forma como ele as tratou a elas mesmas, mas sim PELA FORMA COMO TRATOU AS SUAS MÃES. Apesar de haver muito a discorrer sobre estes tópicos, é sobre este em particular que hoje me quero deter.
SE COMO FILHA TE ALINHAS COMPLETAMENTE COM A VISÃO DA TUA MÃE, julgando as atitudes do teu pai contra ela, deixas de ver o teu pai pelos teus próprios olhos: e passas a vê-lo como “a parceria da mãe”, o que são papéis diferentes.
Enquanto julgas o teu pai pela forma como tratou a tua mãe, continuarás a julgar a forma pelo qual os homens te tratam a ti, já que para a tua 'criança interior' nunca serão suficientes – pois que CONTINUAS A VER O “PAI COMO INSUFICIENTE”.
“Curar o pai” significa DEIXAR DE VÊ-LO PELOS OLHOS DA TUA MÃE, deixar de vê-lo enquanto ‘parceria’ e vê-lo mais como pai, para assim o poderes aceitar como o humano que foi no passado e tu, como filha adulta, te permitires cultivar uma relação saudável com os homens e contigo mesma.
Muitas filhas adultas nutrem hoje um profundo ressentimento e sentimento de rejeição face às figuras paternas, não pela forma como eles exerceram o papel de pais, mas PORQUE EMPATIZARAM COM A DOR DAS SUAS MÃES.
O facto de um pai não ter as ferramentas essenciais para ser uma parceria madura para a mulher, não faz dele – não necessariamente – um ‘mau pai’. Ao mesmo tempo, importa reconhecer que foi a mãe quem escolheu essa pessoa como companheira: não é à filha que cabe julgar se o pai É MENOS OU MAIS PAI por causa da QUALIDADE DE MARIDO QUE FOI PARA A MÃE.
Tenho trabalhado com muitas filhas de pais bons, ainda que tenham sido maridos infiéis, egocêntricos, dependentes ou imaturos – isso não diminui as ações que exerceram como bons pais. Da mesma forma, claro, que tenho trabalhado com muitas filhas de maridos e pais altamente tóxicos.
Talvez eles não estivessem lá para apoiá-las, porque talvez não fossem emocionalmente maduros, porque talvez estivessem profundamente magoados e por isso magoassem profundamente os/as filhos/as.
É totalmente válido ressenti-lo. Ao mesmo tempo, CURARES O VÍNCULO COM O TEU PAI REPRESENTA CURARES O VÍNCULO COM UMA PARTE DE TI MESMA – sem ele não estarias viva, e integrar a parte de nós que nos dá energia para a ação, para o compromisso, para encontrarmos o nosso propósito e alcançarmos os nossos objetivos (a ‘masculinização do Self’).
“Curar o pai” não significa perdoá-lo ou curar a relação com ele. Significa sim, CURAR O VÍNCULO E A INTERPRETAÇÃO QUE FAZES DELE, PARA QUE A PARTIR DE UM LUGAR DE SÁUDE E PAZ INTERNAS, possas começar a “tornar-te o pai e, claro, a mãe” de que tanto precisaste na infância.
…escolhas homens com medo do compromisso e da intimidade emocional;
…escolhas homens sexistas e machistas;
…tenhas dificuldade em confiar em qualquer homem;
…faças tudo que possas para fazer um homem gostar de ti e te sentires “escolhida” e “vista”;
…escolhas homens que estão emocional e fisicamente indisponíveis;
…escolhas homens que precisem de 'salvação' ou 'cuidado materno'.
A razão pela qual isto acontece está no facto do teu pai (sendo a primeira figura masculina da tua vida) se tornar a tua referência subconsciente do que “DEVES” ESPERAR DE TODOS OS HOMENS, e a referência para o que precisas de ser como mulher para estares segura e conseguires amor.
A tua relação com os homens refletirá as feridas emocionais não curadas da tua relação com o teu pai – ou figura paterna – quando eras criança.
…era um homem emocionalmente indisponível para ti, distante, frio, ocupado ou desinteressado em ti;
…era muito crítico contigo;
…te pressionava no sentido de lograres grandes conquistas;
…te passou a mensagem de que eras “demasiado” (demasiado emocional, demasiado delicada, demasiado necessitada, etc.…);
…te passou a mensagem de que não eras “suficiente”;
…não foi uma figura segura para ti (foi física e/ou emocionalmente abusivo contigo, ou simplesmente não te protegeu do abuso de outros)…
…precisavas de provar que eras digna de receber amor;
…não és suficiente/demasiado exigente;
…não és digna de seres protegida;
…precisas de encolher-te, esconder-te, não dar trabalho;
…os homens não são seguros, mas ao mesmo tempo precisas deles;
…precisas de proteger-te porque ninguém mais o fará.
Tanto a tua ‘criança interior’ como a tua versão adulta precisam de amor, de proteção e validação da parte do teu pai, e ao mesmo tempo estão RESSENTIDAS POR ELE NÃO SER O PAI QUE NECESSITA(VA)M.
Isto condiciona-te a estabeleceres relações com os homens e com o lado masculino DESDE AS FERIDAS E NECESSIDADES NÃO SATISFEITAS DA TUA ‘CRIANÇA INTERIOR’, até que decidas curá-las e satisfazê-las de ti para contigo mesma.
OUTRO
Voltando ao início, vimos já que muitas das nossas feridas pessoais têm raiz nas PERTURBAÇÕES SÓCIO-IDEOLÓGICAS que fazem as mulheres reféns da misoginia, e os homens reféns da ‘masculinidade tóxica’. Quando percebemos que a sociedade está doente, não é sinal de saúde estar-se bem-adaptado/a a ela. A sociedade precisa de esclarecimento e de orientação.
Se não adotarmos uma POSTURA DE ALERTA E CRÍTICA, a vulgarização da crença generalista “Os homens são todos iguais” poderá levar-nos, individual e coletivamente, à crença fatalista de que é escusado nos insurgirmos pró-ativamente contra as motivações – pessoais e societais – que estão nos seus bastidores, já que o fatalismo é uma inevitabilidade. Não aceitaria que nenhuma cliente minha cedesse a semelhante resignação angustiada: NÃO HAVERIA PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO BEM-SUCEDIDO NESSAS CONDIÇÕES.
Transformar a sociedade num espaço humano melhor é, sem dúvida, uma disposição admirável – mas uma tarefa assoberbante. Tão assoberbante que talvez só se concretize de verdade quando percebemos que A ÚNICA COISA QUE PODEMOS MUDAR É A NÓS PRÓPRIOS/AS E AOS NOSSOS CONTEXTOS MAIS IMEDIATOS, um passo de cada vez, com persistência e determinação e ajuda.
Tenho o privilégio de atender em consultório algumas das mulheres mais extraordinárias que conheço. Mulheres que unem o seu trabalho terapêutico pessoal a um de ATIVISMO SOCIAL. Mas mesmo a elas, por muito que lhes apoie e incentive o protesto contra a ordem social que as oprime, tenho frequentemente de recordar a importância de se NÃO DESPERSONALIZAREM POR DETRÁS DAS BANDEIRAS COLETIVAS.
Enquanto não cultivares o teu AUTOCONHECIMENTO para teres uma RELAÇÃO SAUDÁVEL CONTIGO MESMA, com os teus limites, com as tuas necessidades, e com o teu valor, será muito difícil cultivares uma relação saudável com os demais: uma parceria com inteligência emocional pode ser negligenciada, e uma relação saudável pode ser sabotada devido ao falso modelo que tens sobre o amor e as relações.
O que escolhas IGNORAR E NÃO SARAR continuará a repetir-se na tua vida amorosa até que te responsabilizes. Se te reconheces neste post, sabe que não estás sozinha. Se estás preparada para CURAR ESSA RELAÇÃO CENTRAL e encontrares VERDADEIRA SEGURANÇA dentro e fora de ti, parabéns: chegaste à CresSendo.
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