Quando algo tem muito valor para nós (seja por que motivo for), tendemos a cuidá-lo. Versão simples da premissa: entra o valor, segue-se-lhe o cuidado. Simples de lógica. Automático de ação. Uma pessoa é especial, investimos nela muita da nossa energia; um compromisso ou projeto é importante, damos-lhe grande prioridade; uma memória é estimável, permitimos que ocupe grande espaço mental; uma loiça é cara, oferecemos-lhe um lugar cimeiro e protegido nas prateleiras do armário, contra eventuais riscos.
A mesma coisa acontece de nós para conosco mesmos/as. Vista de fora, a pessoa que identificamos na nossa imaginação como ‘tendo uma boa autoestima’ é alguém que se percebe de valor, ‘que gosta de si mesma’, tratando-se consequentemente de forma correspondente. Mas o que acontece a quem ‘não gosta de si mesmo/a’? Como pode alguém que não se percebe de valor, passar a perceber-se de valor?
Esta é uma dúvida recorrente em consultório: ‘como faço para ter uma boa autoestima?’. Antes de mais, importa esclarecer que a ‘autoestima’ é uma competência, uma qualidade que se aprende e se treina – e quanto mais musculada, mais poderosa (isto é, maior o seu poder de autovalorização). Para onde nos leva agora o seu raciocínio?
É aqui que entra em jogo a ação de
um certo mecanismo subjetivo na assombrosa maquinaria do nosso psiquismo. Trata-se de um mecanismo especial – quase ‘
mágico’ – que –
por intermédio do inconsciente – opera à semelhança de uma
alquimia [Nota:
a alquimia é uma pseudociência medieval, já ultrapassada, que tomava por um de vários objetivos a transformação de metais em ouro; o termo é usado como metáfora para a ‘expansão de consciência’, em que o metal representa a ‘mente ignorante’ e é transformado em ouro, ou seja, em sabedoria].
A estranheza deste ‘mecanismo alquímico’ é a de permitir inverter a lógica simples e automática do binómio acima identificado (‘entra o valor, segue-se-lhe o cuidado’), na medida em que a segunda sentença declarativa (o cuidado) passa a ter poder de influenciar a primeira sentença declarativa (o valor) também. Por outras palavras, este mecanismo permite não só que o valor gere cuidado, mas também que o ato de cuidar produza um sentido de valor.
Como conta Saint-Exupéry: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante”.
Podemos produzir autoestima, ou seja, valorização pessoal, se agirmos na pressuposição de que somos valorosos/as. Ênfase no verbo ‘agir’. Não se sente especial, não se sente importante, não se sente útil, não se sente capaz? Talvez então não esteja a dar ao seu Self o que ele necessita. Não está a investir energia (suficiente) em si, não se está a dar (a devida) prioridade, não se permite tomar como objeto do seu próprio espaço mental (o suficiente), não se está a proteger (o suficiente). Sim, pode estar a dar ao seu Ego o que ele necessita (e em determinados momentos e fases do nosso desenvolvimento, é imprescindível fazê-lo) – mas talvez não ao seu Self. Há que regá-lo, há que protegê-lo.
AUTOCUIDADOS:
Às ações ou práticas, atos diários e estratégias conscientes que incorremos para fortalecer e cultivar o nosso bem-estar, cuidar e prevenir qualquer tipo de doença ou desconforto mental ou físico, por meio da atenção às necessidades do nosso Self, chamamos de ‘autocuidados’.
Quando
dependemos dos outros para sermos cuidados/as ficamos
à mercê de ações que não podemos controlar (o que nos leva à imprevisibilidade e à experiência da ansiedade). Há que retirar essas ervas daninhas. Quando desenvolvemos cuidados centrados em nós, reforçamo-nos contra
eventuais dependências. Saímos de um
registo ego-cêntrico (voltado para a necessidade de securização dependente de elementos externos a nós) para um
registo centrado-no-Self (voltado para a nossa autenticidade).
Os autocuidados implicam identificar essas necessidades e satisfazê-las, mantendo o foco em nós mesmos/as. Fazem portanto com que nos tornemos a nossa própria prioridade. Ao investirmos em nós, fortificamos a conexão com o nosso Self. Ora, quando reconhecemos e cuidamos as peculiaridades do nosso Self, o ‘mecanismo alquímico’ da nossa psique emite a mensagem ao nosso inconsciente de que somos valorosos/as. E o inconsciente, atuando como uma ‘central telefónica’, retransmite essa mensagem ao nosso ‘reservatório de autovalorização’ – enchendo-o.
Em consulta, o conceito de 'autocuidados' oferece-nos um instrumento útil à organização da energia que devemos direcionar para a resolução das nossas dificuldades e problemas.
Existem vários tipos de autocuidado. Vejamos alguns deles...
AUTOCUIDADOS FÍSICOS: diz respeito ao atendimento das necessidades físicas do corpo:
alimentação (variedade, qualidade nutricional, comida gratificante),
sono (quantidade e qualidade),
ativação física (ex.: exercício, caminhada ao ar livre, desporto, etc.; mas também o
descanso: abrandar o ritmo e fazer pausas ao longo do seu dia, investir num banho demorado e relaxante),
saúde médica, incluindo a
saúde sexual (estará na altura de um
check-up?);
AUTOCUIDADOS EMOCIONAIS: comportamentos que beneficiam os pensamentos e emoções, nomeadamente a permissão de sentir e pensar. Não existem emoções boas ou más, certas ou erradas. Todas são válidas e importantes de serem ouvidas, processadas e interpretadas. Não reprima as suas emoções. Exemplos de como praticar este autocuidado: (1) Fazer um diário das suas emoções; (2) expressar emoções, aceitá-las sem julgamento, através da escrita, da partilha do que sente com pessoas de confiança, e de atividades de expressão, a pintura, a dança, e o canto; (3) ser tolerante consigo mesmo/a; saber-se perdoar sempre que necessário e não exigir demasiado de si; praticar a autocompaixão; e, se necessário, pedir ajuda (de amigos ou de um profissional habilitado).
Claro que encarar as nossas emoções não é tarefa fácil. Os autocuidados emocionais não são sinónimo de gratificação imediata. Muitas vezes compara o esforço da elaboração emocional àquele que fazemos quando nos toca tomar um xarope de travo amargo: em perspetiva, o desconforto é apenas temporário, e mais tarde recolhemos os benefícios da cura.
Importa lembrar que ninguém pode controlar a emergência das emoções (já que são instintivas). No limite, podemos controlar a forma
como nos posicionamos diante delas: e
ou as confrontamos, ou as evitamos. O que tipicamente encontro em consultório são pessoas que evitam as emoções e, quando estas emergem, tendem a
invalidá-las (criticando-se ou censurando-se por sentir o que quer que estejam a sentir).
SAIBA MAIS SOBRE AUTO-INVALIDAÇÕES. CONTINUE AS SUAS LEITURAS AQUI: https://todoomundoexplica.blogspot.com/2024/01/auto-invalidacoes.html
Sabe-se é que é da natureza das emoções virem à superfície. Quando as evitamos, devido à sua carga negativa (até mesmo intolerável à consciência), as emoções tendem a adoecer e a manifestar-se sob a forma de sintomas. Como lembra o meu professor Eduardo Sá: “só deprime quem não se permite entristecer”.
As emoções são alicerçais para a orientação e para a motivação de um funcionamento adaptativo, e desempenham um papel essencial na resolução das tarefas de desenvolvimento características de cada fase do ciclo vital. Ajudam-nos a avaliar as alternativas, oferecendo motivação para mudar ou fazer algo, pelo que não reconhecê-las pode levar a comportamentos disfuncionais e expressões emocionais descabidas (como explosões de raiva ou altos níveis de ansiedade). Por outro lado, as emoções revelam-nos as nossas necessidades, sendo que ao guardá-las, teremos dificuldade em expressar e conseguir suprir essas mesmas necessidades. Por exemplo: uma pessoa que se sente triste tem, geralmente, a necessidade de acolhimento e securização; contudo, se não identifica adequadamente essa emoção, poderá expressá-la como raiva, por exemplo, e ao invés de se aproximar de outra pessoa, afasta-a, sem conseguir suprir a sua necessidade de acolhimento. Descrever, expressar e comunicar os nossos próprios sentimentos, regular as nossas emoções (retermos as emoções, porém sem reprimi-las e canalizá-las conforme a situação e o momento mais oportuno), bem como reconhecer as emoções dos outros (sensibilidade aos sinais verbais e não-verbais das outras pessoas) e controlar as nossas relações sociais são habilidades exigentes que devemos desenvolver para desafiar o défice emocional. É o domínio da Inteligência Emocional (IE).
AUTOCUIDADOS INTELECTIVOS: consiste na estimulação mental, visando o desenvolvimento do pensamento crítico e da criatividade. Eis algumas formas de se cuidar: (1)
ler um livro novo, (2) fazer um
curso/formação/workshop, (3)
trocar ideias com outra pessoa, com argumentação (intervisão por exemplo), (4) ouvir
podcasts.
AUTOCUIDADOS SOCIAIS: dizem respeito à socialização com o outro, e envolvem mantermos uma rede de suporte e apoio; permitirmo-nos a relações positivas e harmoniosas; afastar pessoas tóxicas; sentirmo-nos bem conosco mesmos/as e com os que nos rodeiam; demonstrar afeto. Como podemos praticá-lo? (1) rir com um amigo; (2) fazer voluntariado; (3) ligar para um amigo ou familiar e conversar sobre como estão ou assuntos variados que façam sentido; (4) aceitar um convite para uma festa; (5) criar um evento e convidar os demais; (6) reencontrar velhos amigos; (7) identificar e afastar relações tóxicas; (8) dizer 'não'.
AUTOCUIDADOS PROFISSIONAIS: cuidar de si mesmo/a não é apenas uma questão de bem-estar pessoal; também impacta diretamente a produtividade e desempenho profissionais. Quando estamos física e emocionalmente saudáveis, temos mais energia, concentração e motivação para enfrentar os desafios do trabalho. Aqui falamos da importância de: (1) gerir o tempo de forma adequada; (2) envolver-se num clima de aprendizagem e evolução; e (3) desenvolver/contribuir para um bom ambiente de trabalho.
AUTOCUIDADOS FINANCEIROS: diz respeito a ter uma relação saudável com o dinheiro. Esta relação está diretamente ligada à estabilidade que quer para a sua vida. Como praticar? (1) Não faça compras por impulso, nem tudo que se gosta e faz bem deve de ser comprado; (2) Organize-se e faça um balanço mensal das suas despesas essenciais, cortando no que for acessório; (3) Pense no seu futuro e faça o seu mealheiro (1€ por dia são 365€ por ano);
AUTOCUIDADOS ESPIRITUAIS: embora seja muitas vezes confundido com religião, não se trata disso. Envolve sim viver no momento presente, onde se conecta consigo mesmo/a e com emoções/sentimentos de gratidão, paz, amor e propósito. Alguns exemplos: (1) atenção plena/mindfullness; (2) meditação; (3) fazer um diário de gratidão; (4) passar tempo na natureza; (5) apreciar uma paisagem que o/a inspire; (6) refletir sobre os seus objetivos de vida.
Recordar que cada pessoa tem vidas diferentes, ritmos diferentes, interesses diferentes e passa por desafios diferentes. As estratégias de autocuidado de umas pessoas não têm de ser s de outras. O autocuidado é um processo individual.
Saiba mais em consultório.
Aqui para si.
Com estima,
Carlos Marinho
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