Avançar para o conteúdo principal

O MEU PAI NUNCA ME DISSE: "EU AMO-TE"

O meu pai daria a vida por mim, mas…
…não era capaz de cuidar dele próprio para poder cuidar de mim.

O meu pai daria a vida por mim, mas…
…não me dava carinho.

O meu pai daria a vida por mim, mas…
…criticava tudo o que eu fazia, fazendo-me sentir inútil.

O meu pai daria a vida por mim, mas…
…chamava-me de 'egoísta' se o que eu quisesse fosse diferente do que ele pretendesse. 

O meu pai daria a vida por mim, mas…
…realmente nem sequer me conhece.

O paulatino e sutil desligar do universo materno, com a presença do pai, é necessário para a formação da identidade de qualquer pessoa. Entenda-se que a identidade de uma pessoa é construída a partir da identificação com um aspeto, atributo ou características de outra pessoa e, no processo de desenvolvimento infantil, o cuidador do mesmo sexo está a serviço desta primeira identificação

Na parentalidade adequada, além de base de identificação, a função paterna estabelece os limites necessários para a compreensão e inserção na sociedade, ajudando a criança a desenvolver o sentido de responsabilidade, de autoconfiança, do potencial de realização e superação dos desafios da vida prática e do seu acesso ao “logos”, ou seja da aptidão para a abstração e a objetivação. A gestão construtiva da própria agressividade é também oferecida pela função paterna, que deve ajudar a criança a desenvolver recursos interiores para drenar e conduzir os seus impulsos agressivos, com a equilibrada intervenção da razão, possibilitando o desenvolvimento das capacidades de (auto)afirmação, (auto)controlo e independência.

No entanto, a função paterna, quando realizada de forma inadequada acaba por gerar feridas emocionais, com repercussões profundas e distintas em homens e mulheres. E essas inadequações podem ser involuntárias ou circunstanciais, o que não as torna menos danosas ou prejudiciais

ausência do exercício saudável da paternidade ou da função paterna, também estão presentes nos modelos autoritários, despóticos, rejeitantes e competitivos. As feridas mais frequentes estão relacionadas com a ausência paterna, que pode dar-se por distanciamento físico, provocado por abandono, trabalho ou qualquer outro impedimento ou pela ausência emocional, quando o pai permanece indiferente às necessidades de afeto e atenção da criança. Acrescidos dos pais punitivos, que fazem uso de constantes ameaças de abandono, com o objetivo de disciplinar ou “educar” os filhos ou ainda os pais abusivos, que usam a violência física nessa tarefa; há também os pais imaturos, que precisam de ser protegidos ou cuidados pelos seus filhos. E ainda, os pais que culpam os seus filhos pelas suas frustrações ou pelas dificuldades ou adversidades familiares. 

Paternidades tóxicas podem lesar a autoconfiança, gerando timidez excessiva, dependência afetiva, angústias, depressão, dificuldade de adaptação às exigências existenciais e tantos outros conflitos e dificuldades em lidar com a realidade

Pais ausentes podem abrir “vazios psíquicos” que criam buscas impossíveis, por pais imaginários, idealizados por filhos inconformados com as suas ausências. São filhos/as que procuram preencher a lacuna paterna na relação com as suas parcerias, nas amizades ou qualquer outra relação que seja uma promessa de encontrar a afeição ausente. 

Por serem idealizações, estes relacionamentos estão sempre sujeitos a deceções e frustrações, acarretando novamente a sensação de vazio e traição, reeditando a sensação de abandono. 

Como a função paterna possui a incumbência de ajudar as crianças a lidarem com a agressividade, tanto a que promove realizações como a que provoca destruições, a ausência paterna ou a sua agressão descontrolada geram despreparo e conflitos para os filhos/as, podendo fazê-los/as herdar comportamentos excessiva e defensivamente reativos, autodestrutivos ou incapazes de construir relacionamentos a dois, que sejam gratificantes e duradouros.

Além dos modelos disfuncionais a serem seguidos, pais afetivamente ausentes tendem a gerar filhos que desprezam a masculinidade – não querendo identificar-se com o pai; e ao contrário, filhas que tentarão identificar-se com ele numa tentativa de superar o pai ausente, negligente, imaturo ou abusivo. Ambos e muitas outras versões de desencontros emocionais, são faces diferentes do mesmo desprezo e do mesmo desespero.

A partir da análise das dificuldades características da relação paterna, podem esboçar-se alguns modelos de funcionamento decorrentes. Tipos de funcionamento que afastam filhos e filhas da sua essência, que os fazem cativos de padrões destrutivos, bem como exilá-los da sua própria essência. 

Desta forma, nos homens, os desencontros com a função paterna podem gerar o “herói”, o “bom menino”, o “eterno adolescente”, o “sedutor” ou outros estereótipos que a falta de um modelo pessoalizado é capaz de gerar. E nas mulheres podem surgir a “Amazonas”, a “eterna menina”, a “superstar”, a “guerreira”, a “descomprometida” ou outro estereótipo que evite a vivência autêntica da feminilidade.

Esses modelos são gerados, a partir de defesas emocionais para que dores não sejam perpetuadas ou para evitar que sejam despertadas ou (re)vividas. Todas as sutilezas da delicada relação com a função paterna não podem ser descritas ou apontadas, mas para toda ferida existem muitas possibilidades de superação e, a única função de descrever e compreender padrões relacionais conflitivos é a de promover formas de transformá-los e redimi-los.

Cada pessoa possui responsabilidade sobre a sua própria vida e sobre a necessidade de ir além das dores que lhes foram impostas, superando a passividade e a vitimização, transformando pessoas feridas em agentes de cura e transformação. Tratando-se da ausência de paternidade, um dos primeiros desafios é o de reconhecer que mágoas e ressentimentos podem estar presentes, ainda que adormecidos ou encobertos por frases como “não tenho mágoas do meu pai” ou “já o perdoei”. 

A cura das feridas, após o reconhecimento da dor, passa pelo desejo de superá-las, seguido da coragem de aceitar a dor de não ter tido o pai sonhado ou esperado, o luto pelo “pai” que nunca existiu, para se acolherem e se ampararem a si mesmos/asRefazer a imagem paterna possibilitará igualmente uma relação mais construtiva com o masculino, uma vez que muitos/as filhos/as não conseguem superar o desprezo e a mágoa que nutriram pelo pai ausente, projetando estes sentimentos noutras pessoas, inclusivamente nos seus companheiros, chefes ou outras figuras de autoridade. 

Identificados os modelos disfuncionais, outras ousadias também são imprescindíveis, como as de assumir a responsabilidade pela independência emocional, aprendendo a desenvolver as potencialidades que ficaram adormecidas, tais como a autonomia, a (auto)disciplina, a condução apropriada da agressividade, a (auto)confiança, e o acesso consciente à própria sensibilidade e afetividade.

Por outro lado, e como lembra Melanie Klein, "Quando, através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de ondem surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor". Em consultório, vejo amiúde como no processo de reconstrução da imagem paterna, o ressentimento é comparativamente mais fácil de se reconhecer e aceitar do que o amor. A verdade, porém, é que não só podemos sentir amor por um pai, apesar de todas as privações a que ele nos tenha sujeitado, como é também saudável ventilá-lo, de nós para conosco mesmos/as - aceitar a 'criança interior' que a seu tempo, numa posição de vulnerabilidade, dependia desse amor, ou da sua idealização.

Muitas vezes o mundo da amorosidade e o da força ficaram exilados dos/as filhos/as juntamente com o amor paterno, levando a que rejeitem o amor por si próprios/as. Semelhantes resgates devem ser feitos com delicadeza, paciência e determinação, entregando-se a uma jornada de amor próprio, transformadora e redentora. Aninhar-se nos próprios braços emocionais cria abraços capazes de acolher novos filhos e filhas, curando antigas feridas familiares. 

Saiba mais em consultório.
Aqui para si.

Com estima,
Carlos Marinho

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA

FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM?  A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. " Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa " justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas  feridas emocionais . [Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferid...

VINCULAÇÃO: ANSIOSA, EVITANTE E DESORGANIZADA

A forma como nos relacionamos afetivamente em adulto não nasce do acaso. Resulta, em grande parte, das experiências precoces que tivemos com as nossas figuras de cuidado - geralmente pais ou cuidadores significativos. A partir dessas vivências, aprendemos o que esperar dos outros, como regular as emoções e como equilibrar a proximidade e a autonomia nas relações. Este conjunto de aprendizados, conscientes e inconscientes, forma aquilo a que a psicologia chama padrões de vinculação (ou estilos de apego). Entre os principais, destacam-se três que tendem a causar maior sofrimento relacional: vinculação evitante, vinculação ansiosa e vinculação desorganizada. Compreendê-los é o primeiro passo para criar relações mais seguras, empáticas e autênticas. VINCULAÇÃO EVITANTE: - Associada a uma real ou percebida ausência das figuras cuidadoras, durante a infância, causando uma disposição para a independência emocional; - Preferem ocultar o que sentem, e fogem às conversas incómodas; - Tende a rec...

OS CORPOS DEVEM ESTAR LOUCOS (DA RECONEXÃO COM A NOSSA 'CRIANÇA INTERIOR')

INTRO O consultório clínico é, cada vez mais, uma estufa de queixas dirigidas ao medo que a ordem social vem tendo do CORPO. É da ordem social desconfiar de tudo quanto nos aproxime da animalidade, do ingovernável, do vulnerabilizante, e da paixão sensorial. Se hoje somos muito 'cógito pensante' e muito pouco 'corpo' , é - pelo menos parcialmente - porque a sociedade nos quer 'máquinas' de produção. Entre as pressas e atropelos das tantas solicitações e responsabilidades externas (que vão desde o trabalho ao consumo desmedido das redes sociais), o tempo deve ser rentabilizado a favor da aquisição de aptidões e competências que apurem o nosso valor mercadológico. Sobra-nos pouco tempo (bolsas de oxigénio) para nós mesmos/as (se é que algum), e menos disposição para compreendermos e cuidarmos da nossa interioridade. Nessa interioridade, as emoções são percebidas como obstáculos à produtividade, levando a que sejam reprimidas e controladas. Quando uma pessoa 's...