Na parentalidade adequada, além de base de identificação, a função paterna estabelece os limites necessários para a compreensão e inserção na sociedade, ajudando a criança a desenvolver o sentido de responsabilidade, de autoconfiança, do potencial de realização e superação dos desafios da vida prática e do seu acesso ao “logos”, ou seja da aptidão para a abstração e a objetivação. A gestão construtiva da própria agressividade é também oferecida pela função paterna, que deve ajudar a criança a desenvolver recursos interiores para drenar e conduzir os seus impulsos agressivos, com a equilibrada intervenção da razão, possibilitando o desenvolvimento das capacidades de (auto)afirmação, (auto)controlo e independência.
No entanto, a função paterna, quando realizada de forma inadequada acaba por gerar feridas emocionais, com repercussões profundas e distintas em homens e mulheres. E essas inadequações podem ser involuntárias ou circunstanciais, o que não as torna menos danosas ou prejudiciais.
A ausência do exercício saudável da paternidade ou da função paterna, também estão presentes nos modelos autoritários, despóticos, rejeitantes e competitivos. As feridas mais frequentes estão relacionadas com a ausência paterna, que pode dar-se por distanciamento físico, provocado por abandono, trabalho ou qualquer outro impedimento ou pela ausência emocional, quando o pai permanece indiferente às necessidades de afeto e atenção da criança. Acrescidos dos pais punitivos, que fazem uso de constantes ameaças de abandono, com o objetivo de disciplinar ou “educar” os filhos ou ainda os pais abusivos, que usam a violência física nessa tarefa; há também os pais imaturos, que precisam de ser protegidos ou cuidados pelos seus filhos. E ainda, os pais que culpam os seus filhos pelas suas frustrações ou pelas dificuldades ou adversidades familiares.
Paternidades tóxicas podem lesar a autoconfiança, gerando timidez excessiva, dependência afetiva, angústias, depressão, dificuldade de adaptação às exigências existenciais e tantos outros conflitos e dificuldades em lidar com a realidade.
Pais ausentes podem abrir “vazios psíquicos” que criam buscas impossíveis, por pais imaginários, idealizados por filhos inconformados com as suas ausências. São filhos/as que procuram preencher a lacuna paterna na relação com as suas parcerias, nas amizades ou qualquer outra relação que seja uma promessa de encontrar a afeição ausente.
Por serem idealizações, estes relacionamentos estão sempre sujeitos a deceções e frustrações, acarretando novamente a sensação de vazio e traição, reeditando a sensação de abandono.
Como a função paterna possui a incumbência de ajudar as crianças a lidarem com a agressividade, tanto a que promove realizações como a que provoca destruições, a ausência paterna ou a sua agressão descontrolada geram despreparo e conflitos para os filhos/as, podendo fazê-los/as herdar comportamentos excessiva e defensivamente reativos, autodestrutivos ou incapazes de construir relacionamentos a dois, que sejam gratificantes e duradouros.
Além dos modelos disfuncionais a serem seguidos, pais afetivamente ausentes tendem a gerar filhos que desprezam a masculinidade – não querendo identificar-se com o pai; e ao contrário, filhas que tentarão identificar-se com ele numa tentativa de superar o pai ausente, negligente, imaturo ou abusivo. Ambos e muitas outras versões de desencontros emocionais, são faces diferentes do mesmo desprezo e do mesmo desespero.
A partir da análise das dificuldades características da relação paterna, podem esboçar-se alguns modelos de funcionamento decorrentes. Tipos de funcionamento que afastam filhos e filhas da sua essência, que os fazem cativos de padrões destrutivos, bem como exilá-los da sua própria essência.
Desta forma, nos homens, os desencontros com a função paterna podem gerar o “herói”, o “bom menino”, o “eterno adolescente”, o “sedutor” ou outros estereótipos que a falta de um modelo pessoalizado é capaz de gerar. E nas mulheres podem surgir a “Amazonas”, a “eterna menina”, a “superstar”, a “guerreira”, a “descomprometida” ou outro estereótipo que evite a vivência autêntica da feminilidade.
Esses modelos são gerados, a partir de defesas emocionais para que dores não sejam perpetuadas ou para evitar que sejam despertadas ou (re)vividas. Todas as sutilezas da delicada relação com a função paterna não podem ser descritas ou apontadas, mas para toda ferida existem muitas possibilidades de superação e, a única função de descrever e compreender padrões relacionais conflitivos é a de promover formas de transformá-los e redimi-los.
Cada pessoa possui responsabilidade sobre a sua própria vida e sobre a necessidade de ir além das dores que lhes foram impostas, superando a passividade e a vitimização, transformando pessoas feridas em agentes de cura e transformação. Tratando-se da ausência de paternidade, um dos primeiros desafios é o de reconhecer que mágoas e ressentimentos podem estar presentes, ainda que adormecidos ou encobertos por frases como “não tenho mágoas do meu pai” ou “já o perdoei”.
A cura das feridas, após o reconhecimento da dor, passa pelo desejo de superá-las, seguido da coragem de aceitar a dor de não ter tido o pai sonhado ou esperado, o luto pelo “pai” que nunca existiu, para se acolherem e se ampararem a si mesmos/as. Refazer a imagem paterna possibilitará igualmente uma relação mais construtiva com o masculino, uma vez que muitos/as filhos/as não conseguem superar o desprezo e a mágoa que nutriram pelo pai ausente, projetando estes sentimentos noutras pessoas, inclusivamente nos seus companheiros, chefes ou outras figuras de autoridade.
Identificados os modelos disfuncionais, outras ousadias também são imprescindíveis, como as de assumir a responsabilidade pela independência emocional, aprendendo a desenvolver as potencialidades que ficaram adormecidas, tais como a autonomia, a (auto)disciplina, a condução apropriada da agressividade, a (auto)confiança, e o acesso consciente à própria sensibilidade e afetividade.
Por outro lado, e como lembra Melanie Klein, "Quando, através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de ondem surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor". Em consultório, vejo amiúde como no processo de reconstrução da imagem paterna, o ressentimento é comparativamente mais fácil de se reconhecer e aceitar do que o amor. A verdade, porém, é que não só podemos sentir amor por um pai, apesar de todas as privações a que ele nos tenha sujeitado, como é também saudável ventilá-lo, de nós para conosco mesmos/as - aceitar a 'criança interior' que a seu tempo, numa posição de vulnerabilidade, dependia desse amor, ou da sua idealização.
Muitas vezes o mundo da amorosidade e o da força ficaram exilados dos/as filhos/as juntamente com o amor paterno, levando a que rejeitem o amor por si próprios/as. Semelhantes resgates devem ser feitos com delicadeza, paciência e determinação, entregando-se a uma jornada de amor próprio, transformadora e redentora. Aninhar-se nos próprios braços emocionais cria abraços capazes de acolher novos filhos e filhas, curando antigas feridas familiares.
Aqui para si.
Com estima,
Carlos Marinho
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