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MULHER: ENTRE A SANTA E A PUTA | ESBOÇOS PARA UMA EMANCIPAÇÃO NO FEMININO

A revalorização da mulher como ser individual e sexual: Um manifesto pró-feminista de inspiração junguiana 

1. Contra o Patriarcado, por uma cultura Anima-friendly

Embora as revoluções burguesas europeias tenham conseguido, no século XIX, instituir a igualdade formal dos homens no nível das leis e da política, semelhante direito não foi estendido às mulheres. É justamente nesta altura que se registam os primeiros movimentos organizados por mulheres, reclamando a democratização dos direitos conquistados pela Revolução Francesa. 

Só durante as primeiras décadas do século XX, na sequência de três gerações de lutas do Movimento Sufragista, em Inglaterra e França é que o direito ao voto feminino se concretizou. Aquando da consolidação do capitalismo industrial, os sindicatos femininos começam o protesto contra a desvalorização da mão-de-obra feminina, que recebia metade da remuneração do equivalente masculino. 

Nos anos 1960 levanta-se uma segunda onda feminista questionando a naturalização dos papéis sociais de género, e sustentando que o masculino e o feminino são criações culturais e não fatalidades biológicas inerentes ao sexo. A partir desta constatação as frente de luta não param de se multiplicar; certos grupos dentro do feminismo, por instantes, organizam-se a partir das suas experiências específicas, como é o caso das mulheres negras, das mulheres trans e das lésbicas. 

No número das suas principais bandeiras contam-se o fim da violência doméstica e da cultura do estupro, a descriminalização do aborto, a liberdade sexual, o fim da desigualdade salarial e o reconhecimento do trabalho doméstico como um trabalho não pago. 

O século XX foi considerado o século da emancipação da mulher; contudo, segundo Teresa Joaquim, (1997), "constata-se que as responsabilidades domésticas ainda continuam a ser da responsabilidade da mulher, assim como a responsabilidade na educação e acompanhamento familiar de crianças e idosos. A sobrecarga de funções atribuídas de forma genderizada implica a ausência de tempo para as mulheres poderem investir na profissão, formação e satisfação pessoal, levando a que ocupem cargos, funções e responsabilidades menos reconhecidas socialmente…”. 

Para Kate Millett, autora do Sexual Politics (1969), a família assume-se como o contexto onde o patriarcado – entendível como modo de opressão e dominação em que o poder masculino é exercido sobre as mulheres – exerce a sua força maior, através da atribuição de género. Recuperando o tópico da vivência não-existencial decorrente do esvaziamento simbólico do ser, e aplicando-o ao caso específico das mulheres, tenho percebido em contexto clínico uma relação particular entre a dificuldade de afirmação pessoal e toda uma série de expectativas – sobre o que é ser e como se devem comportar as mulheres –, assentes no discurso masculinista que permeia as instituições da nossa sociedade predominantemente patriarcal. 

Conforme João Neto, “da mesma forma que as individualidades caminham para a integração dos conteúdos divergentes, também a humanidade, como somatório das individualidades que a compõem, caminha para a superação da sua tendência Animus e o crescimento do seu Anima. A cultura machista vai cedendo espaço à presença da mulher, que tanto cresce na absorção do que lhe falta de Animus, como influencia o todo com o que tem de Anima”. 

É na busca da superação de uma sociedade patriarcal machista que os feminismos surgem como movimento, objetivando quebrar com toda e qualquer ideia contrária à emancipação feminina e libertá-la dos diferentes grilhões que a condicionam. Segundo a Plataforma Portuguesa para os Diretos das Mulheres, “Os feminismos são movimentos de inquietações, indignações, reflexões, partilhas de saberes e de seres, que lutam pela promoção dos direitos humanos das mulheres e pela igualdade nas mais diversas esferas das vidas. São diversos mas assentam numa matriz tridimensional comum – na reflexão sobre o sistema social que condiciona o livre movimento das mulheres nas várias esferas da vida; em tornar visíveis os factos ocorridos para que não se duvide que as experiências de vida desiguais das mulheres face aos homens, ainda que vividas no individual, são experiências coletivas; e na atuação sobre essas desigualdades, propondo medidas que promovam o empoderamento e a pró-ação das mulheres em prol da igualdade de oportunidades, de tratamento e de resultados”.

Em todas as suas diversas representações, o objetivo comum é o empoderamento da mulher e o fim do machismo como um todo, desde as esferas políticas até os meios de comunicação. Embora alguns grilhões possam ser visíveis, outros não se fazem tão notórios – muitos destes poderão estar concentrados nas noções arquetípicas. 

Enquanto “[o] casamento, a família, a posição hierárquica, a divisão laboral, o estatuto económico, a culpa associada à sexualidade, a religião… remetem a mulher para uma posição de submissão, de procura de aprovação e de culpabilidade”, a internalização das projeções decorrentes de certos Arquétipos concentrados na ideologia patriarcal potenciam angústias emocionais, fazendo com que muitas mulheres se sintam culpadas psicologicamente pelo desejo de emancipação. 

Millett recorda como certas crenças religiosas e obras de literatura mitológica refletem as convicções patriarcais sobre a mulher enquanto “a outra”, criada pelo homem para atender às suas necessidades – é o caso da história de «Adão e Eva» e d’«A Caixa de Pandora». Espera-se, com efeito, que a mulher seja obediente, e que concentre em si características como a castidade, a pureza e a perfeição (mulher-Santa). 

Nesta sequência, “os sentimentos associados à sexualidade feminina são habitualmente impuros e pecaminosos” (Cecília da Costa); e se a mulher reclama o seu próprio direito ao desejo sexual é acusada de depravação, de vulgaridade e desprezada (mulher-Puta). 

2. O Pensamento Simbólico como Instrumento Feminista na Revalorização da Mulher Sexual: 

Durante séculos, a atividade sexual foi impositivamente apresentada às mulheres como mera forma de reprodução, e o prazer sexual reprimido como condenatório. Falar de orgasmos era – ainda o é para muitas – tabu na conversação convencional, e o recato protegia a falta de opinião. 

A forte repressão sexual à qual as mulheres sempre foram submetidas, o sentimento de culpa, o nojo aos nossos corpos e nossos fluídos, o prazer que nos é negado, reflete de forma negativa na vida das mulheres, que desde à tenra idade de socialização, são proibidas de conhecer os próprios corpos. Masturbação é pecado. Sexo é pecado. A vagina é um órgão desconhecido, sujo, fedorento. Não toque, não sinta prazer” (Andressa Stefano). 

Para Botton (2013), a atividade sexual ainda hoje é espartilhada por todo um conjunto de expectativas sociais, frequentemente sancionadoras, acerca de como as mulheres devem sentir, pensar e agir diante dela. Daí, voltando às ideias de Millett, o motivo pelo qual muitas são atormentadas pela culpa, por neuroses, fobias e desejos disruptivos, indiferença e até aversão ao sexo. 

Por outro lado, muito em parte devido à herança do pensamento cartesiano, séculos de divisão entre espírito e matéria foram-nos distanciando da compreensão e da experiência da matéria como a algo sagrado. 

 Do ponto de vista analítico, enquanto permanecemos inconscientes da divindade inerente à matéria, a sexualidade é manipulada para preencher desejos do Ego. Nenhum outro Arquétipo se presta a mostrar de forma tão explícita a proposta de integração entre o sagrado e o profano feminino como o da ‘Prostituta Sagrada’. Esta imagem poderá aproximar a mulher de uma relação mais adequada com o seu próprio corpo já que: “

A mulher que tem consciência da deusa, cuida de seu corpo com alimentação e exercícios adequados, e aprecia os rituais como banhar-se, vestir-se e aplicar cosméticos. Não se trata de propósito superficial, de apelo pessoal, relacionado à gratificação do ego, mas sim de respeito por sua natureza feminina. Sua beleza deriva de ligação vital com o Si-mesmo. Tal mulher é virginal. Isso não tem nada a ver com estado físico, mas com atitude interior. Ela não é dependente das reações dos outros para definir seu próprio ser. A mulher virginal não é apenas o reverso do homem, seja ele pai, amante ou esposo. Ela mantém-se em pé de igualdade em relação aos seus direitos. Não é governada por ideia abstrata do que ela “deveria” ser ou “do que as pessoas vão pensar”. 

 Na medida em que agrega em si os lados sagrado e profano da mulher, esta imagem possibilita uma ampliação da limitada e excludente mentalidade ocidental. 

Considerando ao binómio Lilith-Eva importa talvez recuperar a determinação de Lilith, a primeira mulher de Adão, expulsa do paraíso porque no primeiro ato sexual exigiu o direito ao prazer sexual e se recusou a ser passiva durante as relações sexuais, de forma a passar da repressão à incorporação da vida sexual como um dos aspectos essenciais da vida da mulher. 

Embora a mulher moderna fale cada vez mais tranquilamente sobre desejo, sobre excitação e orgasmo, partindo à procura deles de forma mais criativa, é ainda importante recordar a relevância da educação afetivo-sexual para a erradicação de tabus, e a promoção de uma melhoria ao nível da saúde e da qualidade de vida. 

O culto dos sentidos tem sido frequentemente, e muito justamente, condenado, dado que os homens sentem um natural instinto de terror em relação às paixões e às sensações que parecem ser mais fortes do que eles, e de que têm a consciência de partilhar com formas de vida inferiores. Mas era evidente […] que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procurava submete-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a característica dominante” (Oscar Wilde). 

3. Mulheres: Putas Comíveis ou Santas Invisíveis? O duplo-padrão da sociedade masculinista: A educação feminina mostra como a trajetória da mulher-Santa começa a encarrilhar-se desde cedo; “brinquedos para meninas” e brincadeiras maternoformes como ‘arrumar a casa’, ‘passar a roupa’, ‘fazer a comidinha’ ou ‘cuidar das bonecas-filhas’, sublinham o reconhecimento do que o futuro compassará: a transformação da ‘boa menina’ na ‘boa esposa, boa mãe e eficiente dona do lar’. 

Na mesma sequência, o molde da mulher-Santa impõe-lhe certos constrangimentos morais que a ensinam a comportar-se discreta e obedientemente, a usar roupas adequadas, e a manter-se virgem até ao casamento. No dia em que deixa de ser submissa ao pai, como caricaturiza Andressa Stefano: “[a] mulher serve ao seu marido e cumpre o seu papel social de encubadora e cuidadora”. 

Se desviada da rota prevista para a formatação desta idealização patriarcal, entregue à libertação do desejo sexual e da procura de prazer, muito facilmente a mulher recai no molde da mulher-Puta. Tomando este rótulo, é desprezada como faltosa em reputação para ser esposa e mãe, e coisificada como objeto sexual descartável, selecionada para o divertimento rápido e banalizado do homem. 

Muito embora se fale em “libertação sexual” com o advento e a popularização dos métodos anticonceptivos, e seja “realmente sedutora a ideia de que [nós, mulheres] podemos ser “livres” e mergulhar em um mar de orgasmo, ressignificar termos misóginos (como vadia, puta, biscate, vagabunda) e apropriá-los para si como uma forma de subversão” (Andressa Stefano), essa liberdade parece ambígua no contexto da persistente opressão masculina e “danosa para a saúde física e emocional de mulheres, principalmente as jovens, que já estão sob pressão social para “liberar o corpinho”, mas que mal sabem como se usa uma camisinha, que não tem acesso à educação sexual e muito menos o feminismo (…) Nada mais conveniente para os homens que mulheres estejam sempre disponíveis, mulheres sem pudores, que adoram sexo, não tem nojo de pênis, que façam menáges, que trepam compulsoriamente. Nada mais conveniente um feminismo que “libere” mulheres ao desejo masculino. Essa suposta carta de alforria mascara uma face do patriarcado, onde os corpos das mulheres ainda são propriedade masculina. Onde o nosso “sim” vai ser sempre consentido, mas onde o nosso “não”, ainda é deslegitimado”. 

É justamente nesta sequência que o assédio e a violação passam a ser justificadas se a vítima tiver postura, roupa ou atitudes de ‘puta’, realidade contra a qual as SlutWalks (ou Marcha das Galdérias) se têm insurgido. 

É de suma importância” prossegue Stefano “que não ignoremos estruturas concretas que ainda não foram superadas: a supremacia masculina; onde sexo é poder (…) o orgasmo pode ser tido através de violência (vide estupro), (…) mulheres ainda são obrigadas a servirem o desejo masculino dominante, são objetificadas pela pornografia, exploradas pela prostituição que tem como base o capitalismo sexual, e que estão sendo pressionadas nos meios supostamente libertários a serem fodidas para “provar que são livres””. 

Para Gail Dines são estas as duas opções ao desenvolvimento da identidade sexual das mulheres: ou putas comíveis ou santas invisíveis, sendo que quer num molde (mulher-Puta), quer noutro (mulher-Santa), a condição social do género feminino é sempre inferior à do homem. 

A resolução do dilema é um exercício que se percebe tão necessário à autonomização da mulher na construção da sua personalidade e da sua vida, como desafiante para todos/as, enquanto cidadãos e cidadãs, em nome da democracia, e do exercício dos direitos humanos. 

Pensar e desenvolver competências em prol de uma igualdade que reconheça e proteja a diversidade é urgente para que uma maior e mais esclarecida consciência coletiva se possa unir na iniciativa mobilizadora da mudança. Como ensina Saffioti: “enquanto “santas” e “prostitutas” continuarem a representar os papéis que a hipócrita sociedade burguesa lhes atribui, o status quo, o estado de coisas presente, encontrará suporte para se manter intacto, incólume, intocável”.

Com estima,

Carlos Marinho

Comentários

  1. Excelente texto, como sempre. Considero que as escolas têm, também, o dever de abordar estes temas sem tabus (sempre adequados às idades). Mas os professores não conseguem , pois nem eles mesmos são esclarecidos nesta matéria tão importante. Valham-nos pessoas como o Dr. Carlos para nos ajudarem a eliminar a culpa carregada, por vezes, durante anos! O conceito de "puta" deveria ser redefinido, também... E muito mais havia por dizer. Muito obrigada pelos seus textos e reflexões.

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