Avançar para o conteúdo principal

MULHER: O ASSUNTO PENDENTE DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE | Carlos Marinho



MULHER: O ASSUNTO PENDENTE DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
| Carlos Marinho |

*

A experiência de menoridade social das mulheres e superioridade social dos homens percebe-se, de forma concreta, em noções de segregação e profunda desigualdade nos vários espaços de vida: violência doméstica; distribuição desigual das responsabilidades familiares (cuidados dos filhos, doentes, idosos, tarefas domésticas); salários desiguais no mundo do trabalho; ocupações e carreiras diferenciadas em função do género; trabalho não reconhecido; discriminação homofóbica contra as lésbicas; oportunidades e estímulos segregados e estereotipados nas escolhas e nas carreiras profissionais; incentivo e naturalização de novas profissões ligadas ao mercado sexual de homens e de mulheres; possibilidades desiguais na participação cívica e política; e ainda a desigualdade e discriminação nos tempos livres e de lazer. “Para as mulheres" diz Maria Teresa Horta "tem de começar a nascer o sol, à cabeceira da sua própria imagem”. É na busca da superação de uma sociedade patriarcal machista que os feminismos surgem como movimento, objetivando o empoderamento da mulher e o fim do machismo, quebrando com toda e qualquer ideia contrária à emancipação feminina e libertando-a dos diferentes grilhões que a condicionam. A consciencialização das pessoas para uma mudança positiva em relação às questões da igualdade de género, é em si um esforço de luta pela democracia, pelo exercício dos direitos humanos, e por uma cidadania plena.

1. Contra o Patriarcado, por uma cultura Anima-friendly: 

Embora as revoluções burguesas europeias tenham conseguido, no século XIX, instituir a igualdade formal dos homens no nível das leis e da política, semelhante direito não foi estendido às mulheres. É justamente nesta altura que se registam os primeiros movimentos organizados por mulheres, reclamando a democratização dos direitos conquistados pela Revolução Francesa. Só durante as primeiras décadas do século XX, na sequência de três gerações de lutas do Movimento Sufragista, em Inglaterra e França é que o direito ao voto feminino se concretizou. Aquando da consolidação do capitalismo industrial, os sindicatos femininos começam o protesto contra a desvalorização da mão-de-obra feminina, que recebia metade da remuneração do equivalente masculino.

Nos anos 1960 levanta-se uma segunda onda feminista questionando a naturalização dos papéis sociais de género, e sustentando que o masculino e o feminino são criações culturais e não fatalidades biológicas inerentes ao sexo. A partir desta constatação as frente de luta não param de se multiplicar; certos grupos dentro do feminismo, por instantes, organizam-se a partir das suas experiências específicas, como é o caso das mulheres negras, das mulheres trans e das lésbicas. No número das suas principais bandeiras contam-se o fim da violência doméstica e da cultura do estupro, a descriminalização do aborto, a liberdade sexual, o fim da desigualdade salarial e o reconhecimento do trabalho doméstico como um trabalho não pago.

O século XX foi considerado o século da emancipação da mulher; contudo, segundo Teresa Joaquim, (1997), "constata-se que as responsabilidades domésticas ainda continuam a ser da responsabilidade da mulher, assim como a responsabilidade na educação e acompanhamento familiar de crianças e idosos. A sobrecarga de funções atribuídas de forma genderizada implica a ausência de tempo para as mulheres poderem investir na profissão, formação e satisfação pessoal, levando a que ocupem cargos, funções e responsabilidades menos reconhecidas socialmente…”.

Para Kate Millett, autora do Sexual Politics (1969), a família assume-se como o contexto onde o patriarcado – entendível como modo de opressão e dominação em que o poder masculino é exercido sobre as mulheres – exerce a sua força maior, através da atribuição de género. Tenho percebido em contexto clínico uma relação particular entre a dificuldade de afirmação pessoal e toda uma série de expectativas – sobre o que é ser e como se devem comportar as mulheres –, assentes no discurso masculinista que permeia as instituições da nossa sociedade predominantemente patriarcal.

Conforme João Neto, “da mesma forma que as individualidades caminham para a integração dos conteúdos divergentes, também a humanidade, como somatório das individualidades que a compõem, caminha para a superação da sua tendência Animus e o crescimento do seu Anima. A cultura machista vai cedendo espaço à presença da mulher, que tanto cresce na absorção do que lhe falta de Animus, como influencia o todo com o que tem de Anima”.

É na busca da superação de uma sociedade patriarcal machista que os feminismos surgem como movimento, objectivando quebrar com toda e qualquer ideia contrária à emancipação feminina e libertá-la dos diferentes grilhões que a condicionam.

Segundo a Plataforma Portuguesa para os Diretos das Mulheres: “Os feminismos são movimentos de inquietações, indignações, reflexões, partilhas de saberes e de seres, que lutam pela promoção dos direitos humanos das mulheres e pela igualdade nas mais diversas esferas das vidas. São diversos mas assentam numa matriz tridimensional comum – na reflexão sobre o sistema social que condiciona o livre movimento das mulheres nas várias esferas da vida; em tornar visíveis os factos ocorridos para que não se duvide que as experiências de vida desiguais das mulheres face aos homens, ainda que vividas no individual, são experiências coletivas; e na atuação sobre essas desigualdades, propondo medidas que promovam o empoderamento e a pro-ação das mulheres em prol da igualdade de oportunidades, de tratamento e de resultados”.

Em todas as suas diversas representações, como anteriormente dito, o objetivo comum é o empoderamento da mulher e o fim do machismo como um todo, desde as esferas políticas até os meios de comunicação.

Embora alguns grilhões possam ser visíveis, outros não se fazem tão notórios – muitos destes poderão estar concentrados nas noções arquetípicas. Enquanto “[o] casamento, a família, a posição hierárquica, a divisão laboral, o estatuto económico, a culpa associada à sexualidade, a religião… remetem a mulher para uma posição de submissão, de procura de aprovação e de culpabilidade”, a internalização das projecções decorrentes de certos Arquétipos concentrados na ideologia patriarcal potenciam angústias emocionais, fazendo com que muitas mulheres se sintam culpadas psicologicamente pelo desejo de emancipação.

Millett recorda como certas crenças religiosas e obras de literatura mitológica reflectem as convicções patriarcais sobre a mulher enquanto “a outra”, criada pelo homem para atender às suas necessidades – é o caso da história de «Adão e Eva» e d’«A Caixa de Pandora». Espera-se, com efeito, que a mulher seja obediente, e que concentre em si características como a castidade, a pureza e a perfeição (mulher-Santa). Nesta sequência, “os sentimentos associados à sexualidade feminina são habitualmente impuros e pecaminosos” (Cecília da Costa); e se a mulher reclama o seu próprio direito ao desejo sexual é acusada de depravação, de vulgaridade e desprezada (mulher-Puta).

2. Mulheres: Putas Comíveis ou Santas Invisíveis? O duplo-padrão da sociedade masculinista: 

A educação feminina mostra como a trajectória da mulher-Santa começa a encarrilhar-se desde cedo; “brinquedos para meninas” e brincadeiras maternoformes como ‘arrumar a casa’, ‘passar a roupa’, ‘fazer a comidinha’ ou ‘cuidar das bonecas-filhas’, sublinham o reconhecimento do que o futuro compassará: a transformação da ‘boa menina’ na ‘boa esposa, boa mãe e eficiente dona do lar’.
Na mesma sequência, o molde da mulher-Santa impõe-lhe certos constrangimentos morais que a ensinam a comportar-se discreta e obedientemente, a usar roupas adequadas, e a manter-se virgem até ao casamento. No dia em que deixa de ser submissa ao pai, como caricaturiza Andressa Stefano: “[a] mulher serve ao seu marido e cumpre o seu papel social de encubadora e cuidadora”.

Se desviada da rota prevista para a formatação desta idealização patriarcal, entregue à libertação do desejo sexual e da procura de prazer, muito facilmente a mulher recai no molde da mulher-Puta. Tomando este rótulo, é desprezada como faltosa em reputação para ser esposa e mãe, e coisificada como objecto sexual descartável, seleccionada para o divertimento rápido e banalizado do homem.

Muito embora se fale em “libertação sexual” com o advento e a popularização dos métodos anticonceptivos, e seja “realmente sedutora a ideia de que [nós, mulheres] podemos ser “livres” e mergulhar em um mar de orgasmo, ressignificar termos misóginos (como vadia, puta, biscate, vagabunda) e apropriá-los para si como uma forma de subversão” (Andressa Stefano), essa liberdade parece ambígua no contexto da persistente opressão masculina e “danosa para a saúde física e emocional de mulheres, principalmente as jovens, que já estão sob pressão social para “liberar o corpinho", mas que mal sabem como se usa uma camisinha, que não tem acesso à educação sexual e muito menos o feminismo (…) Nada mais conveniente para os homens que mulheres estejam sempre disponíveis, mulheres sem pudores, que adoram sexo, não tem nojo de pênis, que façam menáges, que trepam compulsoriamente. Nada mais conveniente um feminismo que “libere” mulheres ao desejo masculino. Essa suposta carta de alforria mascara uma face do patriarcado, onde os corpos das mulheres ainda são propriedade masculina. Onde o nosso “sim” vai ser sempre consentido, mas onde o nosso “não”, ainda é deslegitimado”. É justamente nesta sequência que o assédio e a violação passam a ser justificadas se a vítima tiver postura, roupa ou atitudes de ‘puta’.

É de suma importância” prossegue Stefano “que não ignoremos estruturas concretas que ainda não foram superadas: a supremacia masculina; onde sexo é poder (…) o orgasmo pode ser tido através de violência (vide estupro), (…) mulheres ainda são obrigadas a servirem o desejo masculino dominante, são objetificadas pela pornografia, exploradas pela prostituição que tem como base o capitalismo sexual, e que estão sendo pressionadas nos meios supostamente libertários a serem fodidas para “provar que são livres””.

Para Gail Dines são estas as duas opções ao desenvolvimento da identidade sexual das mulheres: ou putas comíveis ou santas invisíveis, sendo que quer num molde (mulher-Puta), quer noutro (mulher-Santa), a condição social do género feminino é sempre inferior à do homem. A resolução do dilema é um exercício que se percebe tão necessário à autonomização da mulher na construção da sua personalidade e da sua vida, como desafiante para todos/as, enquanto cidadãos e cidadãs, em nome da democracia, e do exercício dos direitos humanos.

Pensar e desenvolver competências em prol de uma igualdade que reconheça e proteja a diversidade é urgente para que uma maior e mais esclarecida consciência colectiva se possa unir na iniciativa mobilizadora da mudança.

Como ensina Saffioti: “enquanto “santas” e “prostitutas” continuarem a representar os papéis que a hipócrita sociedade burguesa lhes atribui, o status quo, o estado de coisas presente, encontrará suporte para se manter intacto, incólume, intocável”.


Com estima,
Carlos Marinho


Comentários

Mensagens populares deste blogue

TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA

FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM?  A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. " Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa " justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas  feridas emocionais . [Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferid...

O DESAFIO DA (RE)CONEXÃO COM O 'SELF' [MANUAL DE BOLSO - Versão 2024]

... VAZIO? DESÂNIMO? SOLIDÃO? FALTA DE FOCO? ANGÚSTIA? ... ´ Muitas destas queixas são queixas típicas do estado de  crise da subjetividade pessoal. E o que quer isto dizer? Bem, comumente, este estado de crise decorre da falta de investimento na nossa " vida interior " . Quando esta falta de investimento leva ao afastamento e eventual  desconexão com o nosso 'Self' , debilitando-o, é gerado intenso mal-estar. Neste caso, a solução está na libertação do 'Eu reprimido' , ou seja, no processo de individuação   e  emancipação pessoal . Por outro lado, pessoas que estão nos estágios iniciais do processo de emancipação pessoal , e que percebem quão isoladas estão em relação à maioria, poderão também experimentar mal-estar sob a forma destas queixas: acontece que o que faz mover o mundo não as faz mover mais. Aos perceberem de forma mais lúcida a crise da subjetividade atual, sentem-se alienadas da cultura ao seu redor. Neste caso, a solução está na resistência às...

ENTENDER PARA SUPERAR: OS DESAFIOS DO NARCISISMO PATOLÓGICO

SOMOS TODOS/AS NARCISISTAS? Sim!  Comecemos por dizer que o que caracteriza o narcisismo é o  investimento da libido na nossa própria imagem .  Todos/as nós possuímos uma energia vital que pode ser investida tanto nos outros, como na nossa própria imagem - a essa 'energia' chamamos de " libido ". Com efeito, é impossível que pelo menos uma parcela da nossa energia vital não seja investida na nossa própria imagem , por isso dizemos que o narcisismo é uma condição básica da estrutura da subjetividade humana ,  transversal a todos os seres humanos .  Para entendermos as "complicações narcísicas" que podem afetar o nosso comportamento, nomeadamente o que consideramos " narcisismo patológico (ou perverso) ", devemos começar pelo início da vida, e entender a formação do narcisismo desde a sua raiz ...  A VIDA COMEÇA NO PARAÍSO (ou SOBRE O NARCISISMO PRIMÁRIO ): No início da vida, o bebé não percebe ainda a realidade externa , não está ainda capaz de re...