No contemporâneo projeto autoreflexivo do Eu, a ênfase na recuperação da identidade fragmentada, a nível relacional, tende a delegar ao outro a função de confirmação e manutenção da identidade, transformando-o num instrumento de legitimação do Eu. A busca do parceiro ideal converte-se, ato contínuo, na busca da autoidentidade que é validada na descoberta do outro. Na pós-modernidade não existe já um trajeto único, antes uma pluralidade de semânticas do amor na conjugalidade e toda uma série de consequentes ideários amorosos. À medida que o aumento da liberdade na escolha do parceiro traz a reboque todas as inseguranças da fugaz efemeridade, aumentam as expectativas irrealistas sobre o Outro e sobre a própria relação.
Se, com efeito, se assiste à inevitável frustração destas expectativas, por outro lado, a prevalência do individualismo por sobre a dimensão ética dos votos relacionais instala um sombrio sentimento de precariedade, em que existe sempre a possibilidade de se escolher outra pessoa, pelo que ninguém é insubstituível. A sociedade contemporânea vai-se esgaçando nas malhas de um paradoxo, pois se a precariedade dos vínculos inspira o desejo de intensificá-los, por outro lado, a insegurança inspira o desejo de os deixar soltos. o amor romântico, desde as suas origens, estimula a idealização do parceiro e expectativas de desenvolvimento da relação – onde se presume uma comunicação psíquica, um encontro de almas de carácter reparador – e uma superexigência em relação a si mesmo, gerando tensões fortes na relação.
Porque os prazeres imaginários do sonhar acordado se mostram superiores aos reais e, a despeito da sua falsidade ou improbabilidade, o prendem à interminável busca da concretização, o hedonista moderno é um artista do sonho, permanentemente insatisfeito. Daí a ansiosa disposição para agarrar quantos novos prazeres forem prometidos. Da prevalência do idealismo sobre a racionalidade, valoriza-se uma relação onde abundam os elementos mágicos e inexplicáveis. porque o mistério e a intriga do romance se alheiam à rotina da vida diária, torna-se exótico, divertido, mágico e lúdico, infundindo prazer e exercendo vasto império. o amor será tanto mais puro e autêntico quanto mais permitir perceber o outro como um ideal.
(onde dói? aqui – onde a nossa fusão afectiva se baralha na confusão das tuas dependências, na insatisfação da rotina segura que sem encanto permanentemente renovado tanto te entedia, nessa urgência de benefícios imediatos que, faltando, tão prontamente te deslaçam do dedo os elos do nosso nós, onde sofres o perigo de sufocares ma minha própria liberdade, onde tudo dura apenas porquanto durar o prazer na manutenção da tua imagem, neste abissal intervalo metafísico, sustido a lágrimas, a suspiros e a sonhos cansados, entre eu e tu)
Numa cultura em que a educação por demais amiúde tem como resultado a eliminação da espontaneidade e a substituição dos atos psíquicos originais por sentimentos, pensamentos e desejos sobrepostos ao desenvolvimento da individualidade genuína, fomenta-se cada vez mais esta vivência não-existencial.
Se considerarmos o percurso da sua existência, facilmente nos inteiramos de que a origem da tão discutida crise identitária humana, enformada pela discrepância entre o que a pessoa toma como devendo ser e o que, de facto, quer ser, se fundamenta num modelo ideal imposto desde o exterior e que se identifica com os mitos do seu contexto cultural.
Ensurdecendo ao apelo das suas verdadeiras aspirações, o moderno neurótico adoece ao orientar os seus esforços não para a realização das suas capacidades reais e potenciais, mas para o mito coletivo de um homem/mulher-máquina, voltado/a para a conquista de objetos, modo de existir que corresponde à liberdade negativa em que se sobrealimentam as necessidades egocêntricas e se desvalorizam as necessidades de crescimento, de conhecimento, de autorealização e de afeto.
(onde dói? aqui – onde morrem a dádiva e a sedução, onde começa o inventário das minhas queixas, do amor tardando, da dor maior, aqui onde tudo é este sombrio sentimento de precariedade, onde ninguém é insubstituível, onde em carne viva arde o peito que te ouve e te aceita e te compreende e te ampara e te motiva, mas no qual nunca te demorares para nele te purificares desse tóxico eu supremo, onde a retraída subjetividade degenera em violência, onde as tesouras da virtualidade me rasgam o corpo, onde as pedras do egoísmo te defendem da minha paz, onde me queres a humanidade oculta por detrás de grossas muralhas de papel)
A compasso do agir autocentrado, no qual o ser é igual ao parecer, fito na valorização do Eu logocêntrico e na satisfação imediata, reflexo da predominante ideologia individualista, de uma tendencial dinâmica instrumental, utilitarista, no relacionamento interpessoal e uma desvinculação do indivíduo em relação ao grupo (sobretudo face-a-face – o que é amplamente reforçado pelas novas tecnologias da sociedade do conhecimento e da informação), acaba por resultar um vazio intersubjectivo de estar-com, uma desintegrante desinteriorização das vivências pessoais, repassado de experiências transitórias, epidérmicas e banalizadoras do amor e do compromisso.
(onde dói? aqui – justamente aqui, onde aguardo de lábios em riste, contra tudo que atente contra a não-violência, contra o nosso mútuo reconhecimento, contra a economia das nossas trocas simbólicas)
Tomando o homem/a mulher como centro e finalidade da sua própria vida, coordenadas jamais passíveis de serem subordinadas a fins que se suponham ter maior dignidade, a liberdade positiva como realização do Eu implica a plena afirmação da originalidade do indivíduo e, a par da sua capacidade para viver de forma ativa e espontânea, sinonimiza-se à realização de todas as suas potencialidades. É assim que chegamos à definição de ideais fictícios como compreendendo os objetivos compulsivos e irracionais que, embora subjetivamente atraentes, acabam por se revelar nocivos à vida, ainda que nem sempre de forma consciente, e à definição do ideal autêntico como qualquer objectivo que fomente o crescimento, a liberdade e a felicidade do Eu.
Ser-se: uma demanda pela verdade
No tempo dos meus séculos vi o sofrimento adoecer. Desde então, todo o suado esforço das minhas cerebrações – quer a nível pessoal, quer enquanto psicólogo – incorri-o, intimativamente, na demonstração de uma simples aceção: a de que o sofrimento problemático – o sofrimento patológico – resulta da violência que exercemos sobre nós próprios ao ignorarmos a chamada do dever. e todo o dever é aceitar a vida tal como ela nos chega, primeiro desejando aquilo que é necessário e, depois, amando aquilo que é desejado, transformando o “assim aconteceu” em “assim o desejei”.
Mais do que a eliminação do sintoma patológico, o dever interior impele a uma demanda pela verdade. a verdade, no sentido grego – isto é, no da aletheia (‘o não oculto’, ‘não escondido’, ‘não dissimulado’) – é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito, a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro, neste sentido, opõe-se ao falso, ‘pseudos’, que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não é como parece. assim, a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas.
Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade depende de que a realidade se manifeste, enquanto a falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências. Se por um lado, este encobrimento da verdade nasce da incapacidade de lidar com situações dolorosas (como situações de perda, de separação, de abandono) – que se traduzem em silêncios tóxicos ou vazios (tabus, “não ditos”, dogmas, segredos de Polichinelo, distorções) – por outro lado percebemos que a resistência a essa mesma verdade, ou a sua não-aceitação (a concentração de uma história cuja continuidade se perde pelos silêncios de que está repassada) também mantém e justifica o sofrimento. porém, muito ao gosto pós-moderno dos ideais do homem/mulher-máquina, o sofrimento da experiência problemática é subaproveitado como possibilidade de aperfeiçoamento pessoal, daí apreciar tanto a observação de Kierkegaard sobre a ansiedade ser um sinal da perfeição humana.
O amor, hoje: fica perto, mas não muito
Estruturado sobre a noção de indivíduo livre e autónomo, o amor é utilizado como forma de compensação do Eu, reforçando o sentimento de pertença mútua dos parceiros. a conivência entre individualização, entendida enquanto gratificação e autodeterminação do self, e realização afetiva, perseguida numa relação de alteridade da qual depende o sentido da própria individualidade, resume tendências históricas centrais de transformação da vida privada.
Todos estes fenómenos se inserem num extenso processo de individualização social que vai libertando as pessoas dos papéis e constrangimentos tradicionais. Na sociedade ocidental espera-se que os parceiros sejam emocionalmente próximos e partilhem a maior parte das vidas um do outro. Resulta porém que a esfera afetiva-expressiva tende a obscurecer a esfera ética, mais preocupada com o compromisso do parceiro um com o outro e o seu reconhecimento dos desafios que eles terão que enfrentar. Isto sugere que a probabilidade de se sair desapontado da relação é maior, o que significa que as gerações futuras irão experienciar medo e ansiedade no comprometimento em relações de casal.
O maior desafio da relação está na capacidade das pessoas manterem e nutrirem o compromisso entre ambas. Este deve ser visto como algo que ajuda a relançar constantemente a relação, através da execução de valores que o são porque a expectativa de que algo benéfico possa acontecer para a relação no futuro envolve um custo ou sacrifício no aqui e agora.
Outro dos factores éticos particularmente importantes é a devoção, o esforço para assegurar a continuidade e melhorar a qualidade da relação, que dispõe a vontade individual para responder de forma construtiva ao comportamento potencialmente destrutivo do outro, evitando a tendência de reagir em escalada. A aventura da conjugalidade pressupõe não só a abertura ao outro mas também uma (re)descoberta do próprio através do outro. Daqui, a definição e redefinição mútua da(s) identidade(s), far-se-á a compasso da rotina, das regras e dos papéis que se estabelecerão e se apurarão ao longo do relacionamento.
Por isso, a ética voltada para a alteridade não se sustenta apenas por relações entre o Eu e o Tu, mas pela experiência ética que leve o Eu a sair da órbita do si mesmo. o reconhecimento da alteridade do Outro supõe, assim, um encontro do Eu com o Outro, em que o rosto do Outro é um mandamento de amor e de entrega total, de forma desinteressada. Somente por essa postura ética, numa rutura paradigmática com o logos do ser, é que se torna possível pensar o Outro a partir da sua alteridade. Sem uma valorização do Outro enquanto Outro, enquanto alteridade que questiona os direitos do mesmo, o processo de encantamento do ser e do logos não teria fim.
Na pós-modernidade as identidades construídas são ‘agoras’, provisórias, relativas e, sem ponto de apoio, não poderão existir relações. Se ambos mudam continuamente, quando num momento se quer estabelecer a relação, no momento seguinte já não se pode aplicar, porque os membros são já diferentes. O ser não suporta a total mudança, já o tinham visto os antigos filósofos. A mudança só se pode dar a partir de um centro que, de certo modo, não muda. Este centro pode ser constituído pelo chamado dom de si – isto é, a promessa de permanência na relação e renúncia de outras opções, enquanto compromisso com a individualidade mais genuína do Eu. É esta promessa de fidelidade que em certo sentido fixa a identidade daquele que se dá, de um modo que ainda lhe permite mudar em todos os outros aspetos. O dom de si – autonomia na decisão – tem efeitos no tempo: permite que o Outro se refira sempre à pessoa que se deu, que possa lembrar-se dela e retribuir com o dom recíproco de si mesmo. Ao ficar assegurada a permanência, a intimidade pode continuar a desenvolver-se sem receio de abandono, provocando espontaneamente a contínua renovação do dom.
Dúvidas? Sintam-se à vontade para expô-las.
Com estima,
Carlos Marinho
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