Avançar para o conteúdo principal

UM DIA DE MUITOS ANIVERSÁRIOS | Um Ano de Barcelona: Uma Retrospetiva

Este dia – que feliz reconhecê-lo – é um dia de muitos aniversários.

Há um ano, eu que tanto defendia o alinhamento da vida em função do cruzado gerúndio de irmos crescendo e sendo, chegando a mim crescido – mas com muito ainda para ser, morria simbolicamente (através do projeto artístico ‘In Memoriam’) com o propósito cônscio de revitalizar a minha autenticidade, festejando a data do meu nascimento com um voo de emigrante para lonjuras espanholas. Ainda que siga arrastando esse cordão umbilical com 1129,4 km de extensão – raiz que me mantém português até à medula –, a distância trouxe a inevitável despedida física de família, amigos e clientes, e o imperativo não-negociável de um redimensionamento de vida.

Há um ano, precisamente hoje, após o encerramento físico da CresSendo, em Braga, retomava a minha prática clínica, desta feita em Barcelona, a cidade que me viu ressuscitar a cores, para continuar num plano mais elevado de realização o tão grato trabalho da minha identidade profissional – esse o de acolher e de elevar a intimidade de todos os heróis do quotidiano que procuram ser mais autênticos através do trabalho psicoterapêutico.

Não infrequentemente – quem o conhece, já o sabe – vou lembrando aos/às meus/minhas clientes que “a corrida às experiências é o início da ilusão” – mas que amiúde é à ambição do Ego que vamos colher a força necessária para superarmos o desafio de certas (necessárias) mudanças. E se nada há que a intenção não perdoe, poucas intenções me ocorrem mais edificantes do que aquelas que animam as mudanças em nome do nosso próprio sagrado Self.

Ainda assim, não é mentira, e di-lo melhor que eu Caeiro, que “[n]as cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. / Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, / Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”.

Há um ano, com a ambição do Ego posta ao serviço de um Self em brasa, enfrentava os labirintos desta cidade de grandes casas às carrachuchas de uma interrogativa, não completamente preparado, nem completamente desprevenido, começando de um zero que não o era totalmente, tentando afinar os limites da minha nova possibilidade de expansão pessoal e profissional.  

Um ano mais tarde, dessangrando o veneno das ilusões metropolitanas que nos fecham a vista à chave, reforço de todas elas a aprendizagem mais inquietante para o Ego que resiste: o equilíbrio entre sentir intensamente e viver com calma. É neste sereno balanço que hoje partilho convosco o bonito dia de celebração destes aniversários todos – que são meus e nossos e da vida, em simultâneo. De onde agora estou, entre o céu e a terra, porque cá cheguei caminhando de muito longe – finalizando o meu próprio processo terapêutico pessoal no caminho –, sei para lá de qualquer interrogativa o mesmo que Jung sabia: que “qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos”. Que não há céu mais vasto, nem terra mais firme do que aquela que cuidamos no relicário da nossa interioridade.

Um ano mais tarde, faço anos – faço todos os anos – que vim caminhando até mim mesmo, “do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura”, cada vez mais fiel à originalidade do que trago de próprio e mais amigo dela, perplexo diante da beleza dos acidentes da vida, humildado pelo que ainda não sei e pelo tanto que nunca virei a saber, atento (como um grande mestre me ensinou a estar) ao cinismo e à indiferença que, não raro, rondam a prática clínica quando esta se estende já por vários anos de atendimento, entontecido de amor pelos meus medos e pelas minhas inseguranças, sabendo que nenhuma delas atua contra mim, sem esperar nada que não encontre já cá dentro – vivendo intensamente, infinitamente mais calmo.

Um ano mais tarde, é também com orgulho e alegria que hoje comunico a autorização concedida pelo Ministério da Saúde espanhol para exercer a minha prática em Espanha, por enquanto exclusivamente orientada a falantes de língua portuguesa, expandindo os ramos, e internacionalizando mais a minha querida CresSendo digital.

É passo a passo que avançamos. E quando todos passarem e ninguém nos olhar, e quando a todos falarmos e ninguém nos escutar, quando todos entrarem e ninguém ficar, quando todos gozarem e ninguém nos sentir, quando todos quiserem e ninguém nos amar, quando a antevisão de todas as possibilidades nos levar de imediato ao cansaço (de quantos cansaços forem subterfúgios para não agirmos), quando tivermos gasto o repertório de truques na arte de nos surpreendermos, quando o quotidiano nos acertar como à patada de uma imensa repetição, e quando nos extraviarmos das correntes do mundo, quando a nossa inocência se esbater para lá das conhecidas transgressões libertadoras, quando os frutos do conhecimento maior nos expulsarem de quantos paraísos idealizarmos, e quando o desencanto fizer ninho no olhar que estirarmos para fora, a gente põe mais uma vela no bolo, fecha os olhos como quem sonha, e sopra, e pede um desejo a gritos ou em silêncio – porque não há quem não seja ser de desejo, de falta, de fome, e de sede –; a gente agarra-se a nós mesmos/as com mais força, e mais de perto, e lembramo-nos triunfalmente: tarde foi ontem, hoje ainda é cedo, e o amanhã é um sonho para sempre.

Mais um ano, mais um desejo, e parabéns por voltarmos, bem ou mal ou assim-assim – que em terapia não há sentimentos inadequados. E o sonho continua. Perto ou à distância, Aqui estarei, para mim, por mim, comigo – para si, por si, consigo, morrendo e voltando à vida, as vezes que forem necessárias, tornando a florescer uns para os outros, árvores perenes de um imenso jardim entregue à mudança das estações, que após os rigores invernais, como velhos amigos, nos voltam a visitar na primavera e a dizer ‘olá, como tem passado?’.

Uma das maiores ironias do crescimento está em perceber que para nos mantermos fiéis à nossa essência devemos sujeitar-nos à atualização de quem somos e, consequentemente, abrimo-nos às novidades da mudança. O mesmo espírito repassou a apresentação do setting terapêutico que, à distância, apresento em Barcelona aos meus clientes. Como a decoração do espaço da CresSendo, em Braga, nunca nada teve de impremeditado, alguns lembrar-se-ão de que acima da poltrona dos clientes, de frente para mim, pendurei um quadro de autoria própria – parte da coleção ‘Pedra Papel Tesoura Beija-me’, feita em parceria com a Associação Território de Afetos – representando uma pessoa de queixo repuxado para o peito, sentada numa cadeira de espaldar. Era a minha forma de nunca esquecer que esse era o lugar de honra na minha casa para o Outro, e também que – como escrevia Ramalho Ortigão – “eu não ocupo posição nenhuma (sobre o Outro), simplesmente ocupo uma cadeira”: outra forma de assinalar o dever respeitador de entender o cliente na sua individualidade, por oposição a impor-lhe a minha própria visão narcísica. Bem entendido, a terapia não é nunca uma coordenada pré-definida pelo terapeuta, antes co-explorada por ambos/as, movida na linguagem com que o/a cliente se entende a ele/a próprio/a e à vida. Quando aqui em Espanha encontrei um quadro representando uma cadeira vazia, que necessariamente estaria de costas para mim e, desta vez, de frente para o/a cliente, soube de imediato que esta era a versão atualizada do anterior.

Explico. A Cadeira Vazia é uma técnica da Terapia Gestáltica, desenvolvida por Fritz e Laura Perls na década de 40, que convida a pessoa a reproduzir um encontro com uma situação/pessoa, como se esta fosse real, de modo a dialogar com ela e, assim, entrar em contato emocional com o evento, podendo aceitá-lo e reintegrá-lo na sua vida. A tanto me propus eu, no meu papel de terapeuta, tão inevitavelmente disposto a ser tela para a projeção do Self dos/as clientes. À medida, porém, que a minha prática clínica se faz mais e mais próxima de uma abordagem psicodinâmica (há ainda muito a explorar e a aprender a este nível), gosto cada vez mais de pensar, como Brian Nosek, que "o psicanalista é, juntamente com o paciente, um construtor de sonhos. O que o coloca mais perto do poeta que do médico". Gosto dos poetas. Eugénio de Andrade tem razão, como todos os poetas têm: “É urgente o amor, é urgente permanecer”. Por isso mesmo, nesta renovação de ciclos da CresSendo, decidi operar uma mudança de setting, e fazê-lo lembrado aos meus clientes através d’«O Sonho» (“Le Rêve”) de Picasso, e enfatizar-me – também – como ‘construtor de sonhos’.

Grande parte do meu trabalho tem consistido em educar e empoderar as pessoas a respeito das suas relações, desde a dimensão afetiva à sexual, com uma forte tónica na experiência amorosa (aqui, em sentido lato). O grande Freud deixou-o inegavelmente claro: “A psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”. Se só o Amor nos pode tornar pessoas, é este amor que fundamenta a CresSendo, é este amor que a faz revigorar, é esta a grande mensagem dos meus préstimos terapêuticos. É pelo Amor que o sonho continua. É pelo Amor que a todos/as convido a olhar para a própria interioridade, que como diz o pai da Psicologia Analítica: “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”.

A sociedade atual é cada vez mais esta metrópole enganadora, onde “as grandes casas fecham a vista à chave, / Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. É então aqui que devemos recuar, criticamente, e insurgirmo-nos contra todas as tentações do esvaziamento individual, para nos devolvermos à nossa máxima e mais total autenticidade, com olhos que voltando-se para dentro têm o poder de despertar-nos. É aqui que recomeçamos: ressuscitando a cores, do inferno que a terra engole, ao zénite do céu aberto, para continuarmos num plano mais elevado de realização gratificante o difícil e delicioso trabalho de nos tornarmos pessoa.

Sempre Aqui, humildado pela contínua confiança de todos os meus heróis do quotidiano, e ciclicamente inspirado pela sua força e persistência, agradece-vos com profunda estima,

O vosso sempre atento,

Carlos Daniel Marinho

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA

FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM?  A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. " Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa " justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas  feridas emocionais . [Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferid...

O DESAFIO DA (RE)CONEXÃO COM O 'SELF' [MANUAL DE BOLSO - Versão 2024]

... VAZIO? DESÂNIMO? SOLIDÃO? FALTA DE FOCO? ANGÚSTIA? ... ´ Muitas destas queixas são queixas típicas do estado de  crise da subjetividade pessoal. E o que quer isto dizer? Bem, comumente, este estado de crise decorre da falta de investimento na nossa " vida interior " . Quando esta falta de investimento leva ao afastamento e eventual  desconexão com o nosso 'Self' , debilitando-o, é gerado intenso mal-estar. Neste caso, a solução está na libertação do 'Eu reprimido' , ou seja, no processo de individuação   e  emancipação pessoal . Por outro lado, pessoas que estão nos estágios iniciais do processo de emancipação pessoal , e que percebem quão isoladas estão em relação à maioria, poderão também experimentar mal-estar sob a forma destas queixas: acontece que o que faz mover o mundo não as faz mover mais. Aos perceberem de forma mais lúcida a crise da subjetividade atual, sentem-se alienadas da cultura ao seu redor. Neste caso, a solução está na resistência às...

ENTENDER PARA SUPERAR: OS DESAFIOS DO NARCISISMO PATOLÓGICO

SOMOS TODOS/AS NARCISISTAS? Sim!  Comecemos por dizer que o que caracteriza o narcisismo é o  investimento da libido na nossa própria imagem .  Todos/as nós possuímos uma energia vital que pode ser investida tanto nos outros, como na nossa própria imagem - a essa 'energia' chamamos de " libido ". Com efeito, é impossível que pelo menos uma parcela da nossa energia vital não seja investida na nossa própria imagem , por isso dizemos que o narcisismo é uma condição básica da estrutura da subjetividade humana ,  transversal a todos os seres humanos .  Para entendermos as "complicações narcísicas" que podem afetar o nosso comportamento, nomeadamente o que consideramos " narcisismo patológico (ou perverso) ", devemos começar pelo início da vida, e entender a formação do narcisismo desde a sua raiz ...  A VIDA COMEÇA NO PARAÍSO (ou SOBRE O NARCISISMO PRIMÁRIO ): No início da vida, o bebé não percebe ainda a realidade externa , não está ainda capaz de re...