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"ISTO DO ORGULHO GAY É RIDÍCULO" | REFLEXÕES SOBRE A AUTENTICIDADE E A RESISTÊNCIA, A PROPÓSITO DO DIA INTERNACIONAL DO ORGULHO LGBTQIA+

Isto do orgulho gay é ridículo. Não sei para quê. Nós [heterossexuais] não andamos por aí a alardear o que somos” [Extrato de entrevista feita pela SIC aquando de uma Marcha pelos Direitos LGBT em Braga] 

Infelizmente, este tipo de observação não é incomum: nem, tão-pouco, correta. Os heterossexuais não fazem outra coisa senão sair diariamente do armário da sua heterossexualidade. Cada dia é dia de ‘coming out’ hétero (o “coming out” é o reconhecimento da orientação sexual do indivíduo): chegam ao trabalho e referem com a leveza de uma inquestionabilidade: “Ontem o meu marido levou-me a jantar fora” ou “A minha esposa anda com ideias de mudar a sala”. Pela praça pública, passeiam-se de mãos dadas e trocam beijos sem polémica; consultam publicidades heterossexistas como se consultassem espelhos exclusivamente talhados para o reflexo da sua orientação. Opostamente, as pessoas LGBTQIAP+ poderão ter de exteriorizar a sua identidade e orientação sexual para que as não presumamos heterossexuais. E a fazê-lo, raramente é de forma definitiva. É preciso sair-se do armário muitas vezes, todos os dias, em diferentes contextos. É ter de validar a unicidade da própria constituição identitária em função de outro referente – como se em si mesmos/as não bastassem. Este é o insultuoso ónus com que as pessoas LGBTI+ têm de arcar. Não que sejam estranhas ao insulto. Desde cedo são aculturadas na ideia de que a sua essência ou é pecaminosa, ou criminal ou doentia. Muitas mantêm-se invisíveis, como estratégia para se protegerem da discriminação e do estigma, ou como resultado de dificuldades em rejeitar o insulto que lhes é dirigido. O orgulho é um imperativo de ferro contra o insulto. 

A consciência de que se é homossexual (gay ou lésbica) ou bissexual surge, normalmente, no período da adolescência. A forma de o descobrir é diferente de pessoa para pessoa e envolve, quase sempre, um período de confusão e de muitas dúvidas. Algumas pessoas jovens dizem que, de alguma forma, sempre souberam que eram “diferentes”. Quando percebem que são homossexuais ou bissexuais, veem finalmente, esclarecidos muitos dos sentimentos confusos que tinham sentido ao longo do seu crescimento. Outras só descobrem a sua orientação sexual na altura das muitas mudanças que ocorrem durante a adolescência. Ainda há quem só se dê conta de ser homossexual ou bissexual quando chega à idade adulta. A discriminação e estereótipos associados à homossexualidade e bissexualidade ainda marcam muito quem se vê confrontado com a sua orientação sexual. Se há quem aceite e assuma com alguma fluidez, muitas pessoas tendem a negar ou a esconder a sua verdadeira orientação sexual. É importante não sentir pressão na definição da própria orientação sexual. É um processo que leva o seu tempo. Aquilo que uma pessoa sentir que verdadeiramente é, é o que está certo que seja.

Em muitos casos, as pessoas LGBTI+ não crescem nem se desenvolvem numa comunidade de pessoas LGBTI+ ou em contacto com pessoas na mesma situação. Daí que o seu percurso possa ser marcado por um considerável isolamento, e pela dificuldade em estar em contacto e estabelecer relações significativas com outras pessoas.  Daí a importância de implementar estratégias comunitárias que permitam o desenvolvimento de identidades positivas; daí a importância de modelos que façam perceber como a sua orientação sexual não é impeditiva de sucesso e de felicidade.

Até aos anos 80, a homossexualidade ainda era um crime. Até aos anos 90, ainda era considerada doença. Hoje persistem ideias erróneas, sem fundamento, acerca desta e de outras orientações que compõem a diversidade sexual humana. Ainda há quem acredite que a homossexualidade é uma experiência triste e inferior à heterossexualidade; que os homossexuais tendem a ser perversos na sua sexualidade; que os relacionamentos homossexuais são pouco profundos, duram pouco e são apenas sexuais; que os progenitores homossexuais ou as famílias de homossexuais não existem nesse estatuto ou não têm valor equivalente aos heterossexuais; que os homossexuais tendem com mais frequência a abusar sexualmente de menores; que a homossexualidade é um comportamento contra Deus ou é um pecado; que a homossexualidade é uma doença, é contra a natureza ou é uma perversão; que os bissexuais devem decidir ser homossexuais ou heterossexuais.

Crescendo a ouvir mensagens negativas sobre ser-se gay, lésbica ou bissexual, a pessoa acaba por internalizar e apropriar o insulto, construindo a crença de que é errado ser quem é. Semelhante internalização é oriunda da vitimação cultural que acontece num espectro de menor e maior severidade, desde insultos e piadas a expressões de violência, abuso e morte.

Tudo o que nos nega a afirmação pessoal de autenticidade limita a nossa felicidade, o nosso bem-estar e o nosso sentido de realização. Em muitos casos, seja ele expresso por bloqueios desenvolvimentais ou sintomas psicopatológicos, o sofrimento surge associado à pressão dilemática de escolher entre o que genuinamente somos ou agradar às idealizações que nos incutem, levando a escolhas não autênticas. É de viver em função de uma identidade que não corresponde ao seu presente, cada vez mais afastada da possibilidade de autoafirmação e da capacidade de fruição da vida, que a pessoa adoece. Amiúde digo então que o ‘eu’ não subsiste parcialmente, que o ‘eu’ não entende de metades, que se exige inteiro, cruamente, na sua mais bruta transparência, na sua mais garrida genuinidade, que a sua expressão livre está sempre do lado da sanidade mental e do progresso social.

Acima de tudo, defendo, o respeito pela individualidade do Outro. Não assumir, à partida, a heterossexualidade de uma pessoa. Não assumir que quem acompanha a pessoa a um serviço não é o/a agressor/a (podendo ser do mesmo sexo que a vítima). Utilizar uma linguagem inclusiva do ponto de vista do género e da orientação sexual, quer relativamente à pessoa quer ao/à companheiro/a (isto é, incluir opções como parceiro/a ou companheiro/a nas questões sobre estado civil ou situação relacional em todas as entrevistas). Utilizar linguagem não patologizante (ou seja, não utilizar palavras conotadas negativamente ou explicitamente homofóbicas, bem como evitar utilizar termos como “normal”, “natural”, “problema”). Não evitar abordar diretamente a orientação sexual e não a minimizar, referindo-se à orientação sexual como uma opção, escolha, ou estilo de vida alternativo. Saber agradecer e honrar o privilégio da intimidade que conosco é partilhada. E vêm-me as palavras de Gi Stadnick à cabeça: "A vida do outro, a casa do outro, o coração do outro... são todos templos sagrados que se pede licença para entrar. Licença essa concedida, depois de instalada a confiança, o carinho, a verdade. Sem essas preciosas chaves, qualquer intromissão é forçada, é indelicada, é errada. Solo sagrado, se pisa descalço”. Sem crítica. Sem julgamento. Com aceitação. Com humanidade.  

Não obstante os avanços legais, políticos e socioculturais a nível nacional e internacional, as pessoas LGBT+ continuam a ser sujeitas às mais repudiáveis violações de direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais. A nível social, os riscos inerentes à livre e saudável expressão afetiva – como o bullying homofóbico, lesbofóbico, transfóbico e machista, a ostracização, os insultos e/ou as agressões – perigam o desenvolvimento de boas competências sócio-emocionais, afetam o humor, o pensamento e a disposição e/ou o comportamento de cada um/a; no caso dos/as jovens, a discriminação na escola, na família e na sociedade em geral leva a que haja uma incidência no mínimo 3 a 5 vezes superior de depressões, ansiedade, de baixa autoestima, de baixa autoconfiança (afetando o seu sucesso escolar e as suas aspirações de vida para o futuro) e de tentativas e concretizações de suicídio,  

A nível profissional, muitas pessoas são despedidas, não são promovidas ou não chegam a ser contratadas devido à sua orientação sexual. A nível religioso, são por vezes condenadas, chegando a ser perseguidas. A nível jurídico, ainda não têm os mesmos direitos que os/as heterossexuais, sobretudo no que diz respeito ao acesso à parentalidade via adoção, perfilhação (co-adoção) ou procriação medicamente assistida. 

São inúmeros os casos de desrelacionamento, de solidão e de secretismo de vidas duplas – sobretudo pessoas que não possuem meios de defesa ou partilha da sua situação (como os mais jovens, e os mais idosos, inclusivamente ‘pais de família’) – bem como de agressões, perseguições, detenções arbitrárias, violência extrema e homicídio na maioria dos países do mundo.

Especificamente em relação aos jovens, devido ao confinamento decorrente da COVID-19, aqueles/as que não podem contar com as habituais redes de apoio — colegas de escola, amigos, comunidade LGBT+, associações de defesa dos direitos das pessoas LGBT+ — e cuja família não aceite a sua orientação sexual ou identidade de género, têm estado numa situação de maior vulnerabilidade no que diz respeito ao seu bem-estar físico e mental. 

Numa conjuntura político-económica caracterizada pela instabilidade e retrocesso nos direitos outrora conquistados, não nos podemos dar ao luxo de subvalorizar estes grupos sociais. Pela liberdade, que é o oposto do medo, continua a ser imprescindível dar visibilidade e voz a todas as identidades afetivo-sexuais não-tradicionais (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexuais, assexuais, queer e pansexuais), bem como a simpatizantes e seus familiares, amigos/as e companheiros/as. 

O que é a homossexualidade? E a bissexualidade? Quais são as causas da orientação sexual? São opções? Pode mudar-se a orientação sexual de uma pessoa? É um pecado? Que fazer se um amigo ou amiga se assumir como homossexual/bissexual? O que faço se o/a meu/minha filho/a me diz que é gay?”. Em caso de necessidade, não seja remisso/a em procurar ajuda

Vale ressaltar que nas Consultas de Psicologia da CresSendo são atendidas todas e quaisquer pessoas que queiram reduzir o sofrimento psíquico associado à sua orientação sexual, partindo de que ela nunca será tratada como desviante ou doentia. A perspectiva de ‘tratar’ a orientação LGBT+ como se fosse patológica afronta todos os meios e técnicas reconhecidas pela profissão do/a psicólogo/a, ignora o acúmulo de conhecimentos científicos produzidos sobre o tema, e materializa a discriminação contra estes grupos sociais. 

A CresSendo afirma-se como um espaço inclusivo, oposto a todas as formas de discriminação relacionadas com a orientação sexual e identidade de género, bem como formas de discriminação social, cultural, étnica, política, religiosa, sexual ou etária, propondo-se como espaço seguro, confidencial, onde toda a escuta se faz sem juízos de valor, prezando cada pessoa como única e irrepetível, e zelando pelo seu máximo bem-estar e à-vontade.

UM FELIZ DIA DO ORGULHO LGBTQIA+

Com estima,

Carlos Marinho

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