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TEMOS DE FALAR DE SUICÍDIO: NORMALIZEM PEDIR AJUDA!


Normalizar o Pedido de Ajuda é o Caminho para a Prevenção do Suicídio 

*

1. Alerta em Portugal: Suicídio em Números Alarmantes

O que faz com que a vida mereça ser vivida? E o que faz com que não mereça sê-lo?

“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental”. Na introdução de O Mito de Sísifo, Albert Camus obriga-nos a encarar estas interrogativas com inescapável franqueza. Mas a reflexão adquire uma urgência particular quando confrontada com a alarmante realidade dos números. O suicídio é, há vários anos, uma das principais causas de morte externa em Portugal, ultrapassando os acidentes de viação. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1000 pessoas morrem por suicídio todos os anos no país - o que corresponde, em média, a três vidas perdidas todos os dias. Por trás destas estatísticas estão histórias interrompidas, famílias em luto e comunidades marcadas por silêncios e estigmas. 

No contexto português, este silêncio tem raízes profundas. Durante décadas, falar de saúde mental foi visto como fraqueza ou tabu, e a própria Igreja e os enquadramentos morais do passado ajudaram a perpetuar a ideia de que o suicídio deveria ser escondido, nunca debatido. Ainda hoje, apesar dos avanços legislativos e da crescente literacia em saúde, muitas famílias e comunidades continuam a evitar o tema, contribuindo para um isolamento que agrava o sofrimento de quem pensa em desistir da vida.

Além disso, persistem desigualdades no acesso aos cuidados de saúde mental: Portugal é um dos países da Europa com menor rácio de psicólogos no sistema público e onde a cobertura continua a ser insuficiente. Em muitos contextos, especialmente no interior e em zonas rurais, o apoio especializado é escasso ou inexistente, e as pessoas enfrentam longas listas de espera ou custos demasiado elevados no setor privado. A pandemia da COVID-19 agravou ainda mais este cenário, expondo fragilidades emocionais, económicas e sociais que permanecem sem resposta estruturada.

A nível global, a situação não é menos alarmante. A OMS estima que mais de 700 000 pessoas morram por suicídio anualmente, sendo esta uma das principais causas de morte entre jovens dos 15 aos 29 anos. Em Portugal, os dados seguem esta tendência: entre os mais jovens, o suicídio é uma das principais causas de morte, mostrando como o problema se tornou não só um drama individual, mas também um reflexo das condições sociais, económicas e culturais em que vivemos. Neste contexto, o bullying - físico, psicológico ou virtual - permanece um problema particularmente grave: milhares de adolescentes em Portugal relatam situações de humilhação e exclusão que afetam profundamente a autoestima e estão diretamente ligadas à ideação suicida. Para demasiados, a escola, expectavelmente um espaço de proteção e aprendizagem, transforma-se num lugar de ameaça constante.

O suicídio é um fenómeno que atravessa fronteiras, culturas e gerações, mas que continua a ser pouco discutido em público, muitas vezes envolto em preconceito. Reconhecer esta dimensão é essencial para compreendermos que as ações autolíticas não é apenas uma tragédia individual, mas também um desafio coletivo de saúde pública que exige respostas urgentes, inclusivas e compassivas. 

2. Autenticidade em Risco: O Caso Particular da Luta LGBTQIA+ por uma Vida Digna

Quando olhamos para a comunidade LGBTQIA+, onde demasiadas pessoas vêem a sua existência ameaçada por simplesmente serem quem são, percebemos que num mundo que tantas vezes condiciona a dignidade humana à conformidade com normas rígidas e excludentes, viver com autenticidade deixa de ser apenas uma afirmação pessoal de identidade: torna-se um ato de resistência, por vezes solitário, frequentemente arriscado.

Estudos indicam que jovens LGBTQIA+ têm até três vezes mais probabilidade de tentar suicídio em comparação com pares heterossexuais. Este risco acrescido está diretamente associado a fatores como rejeição familiar, ambientes escolares ou laborais hostis, discriminação, violência ou falta de acesso a cuidados de saúde mental adequados, potenciando sintomas de depressão, ansiedade, comportamentos de automutilação e ideação suicida. Estes factores assumem contornos mais graves quando se alimenta um clima político que legitima preconceitos e normaliza discursos de ódio. Nestes moldes, facilmente a experiência vital se parece menos um direito do que um fardo, transformando-se numa batalha incessante ao invés de um espaço de possibilidades livres.

Dados do Observatório da Discriminação Contra Pessoas LGBTI+ mostram que, entre 2020 e 2022, foram registadas diversas situações de discriminação em escolas, serviços de saúde, locais de trabalho e no espaço público. Mais de metade configuraram crimes ou incidentes motivados por ódio, mas menos de um quarto chegaram a ser formalmente denunciados. Esta invisibilidade agrava a vulnerabilidade da comunidade, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos. Apesar de Portugal ter uma das legislações mais avançadas da Europa em matéria de direitos LGBTQIA+, a lei não muda, de forma automática, atitudes homofóbicas, bifóbicas, transfóbicas e interfóbicas. 

Quando falamos em prevenção do suicídio na comunidade LGBTQIA+, não podemos assumir que todas as experiências se inscrevem no mesmo plano. A vulnerabilidade agrava-se quando se somam outros fatores de exclusão, como a classe social, a origem étnica, a condição de imigrante ou a vivência com deficiência. Jovens LGBTQIA+ em contextos rurais, por exemplo, enfrentam frequentemente isolamento social, escassez de recursos especializados e ausência de redes de apoio, tornando o risco suicidário ainda mais elevado. Da mesma forma, pessoas migrantes LGBTQIA+ vivem muitas vezes numa dupla invisibilidade: por um lado, sofrem discriminação em função da orientação sexual ou identidade de género; por outro, carregam as dificuldades associadas à integração cultural, económica e linguística. Reconhecer esta interseccionalidade é essencial para criar respostas mais ajustadas e verdadeiramente inclusivas. 

O Governo português lançou em setembro de 2024 a Linha Nacional de Prevenção do Suicídio, disponível 24 horas por dia e gratuita, com mais de uma centena de psicólogos especializados. Trata-se de uma medida importante, mas que ainda não contempla de forma específica a população LGBTQIA+. Organizações da sociedade civil, como a ILGA Portugal, e estruturas estatais, como a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, têm vindo a promover projetos de apoio psicológico, formação e literacia em saúde mental. Ainda assim, faltam respostas adaptadas à realidade concreta das pessoas LGBTQIA+, que muitas vezes evitam procurar ajuda por receio de preconceito.

Em 2025, o debate político inclui já a proposta de reativação de um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, reforçando o papel das autarquias, a formação de profissionais de saúde e a comunicação responsável sobre o tema. No entanto, os dados continuam a evidenciar a urgência de políticas públicas mais inclusivas, capazes de responder às vulnerabilidades específicas desta comunidade.

3. Por Que Continuamos a Fingir que Está Tudo Bem?

Falar sobre o suicídio é, acima de tudo, falar sobre dor humana - muitas vezes invisível, mas profundamente real. Por trás de cada estatística, está uma vida interrompida, uma história única que poderia ter continuado se tivesse encontrado compreensão, apoio e esperança. Muitas vezes, quem pensa em acabar com a própria vida não quer morrer: quer apenas que a dor seja reconhecida e que cesse. Reconhecê-lo é fundamental para quebrar o estigma que ainda envolve o tema e que silencia tantas pessoas no momento em que mais precisam de ser ouvidas.

Sucede que o suicídio não é apenas um drama individual: é também o reflexo coletivo da estrutura emocional da nossa sociedade. Vivemos numa era hiperconectada, mas profundamente desligada das nossas próprias emoções e das emoções dos outros. Ensinados a valorizar a produtividade, a aparência e o desempenho, afastamo-nos com crescente estranheza da nossa inevitável vulnerabilidade, particularmente da experiência e partilha dos nossos medos, tristezas e ressentimentos. Pedir ajuda é, muitas vezes, visto como fraqueza; chorar ou expressar raiva é ainda tabu; dizer “não estou bem” ainda carrega estigma. Esta incapacidade cultural de reconhecer, expressar e acolher emoções cria um terreno fértil para o isolamento emocional e o desespero - e o suicídio nasce, muitas vezes, na cuba desse silêncio perturbador. 

    Uma sociedade emocionalmente iletrada não sabe ouvir nem ensinar a pedir, não sabe validar a dor antes que ela se torne insuportável. Mais vezes do que menos, continuamos a insistir em frases como “aguenta firme”, “estás a dramatizar” ou “há quem tenha problemas maiores”, perpetuando a ideia de que o sofrimento deve ser escondido ou desvalorizado.

Outro aspeto fundamental é o papel dos meios de comunicação e da linguagem na construção de uma cultura de prevenção. Em Portugal, continua a ser frequente que o suicídio seja retratado de forma sensacionalista, sem respeito pelas recomendações internacionais da Organização Mundial da Saúde, o que pode gerar riscos de contágio e reforçar o estigma. 

No caso particular das pessoas LGBTQIA+, a sua representação nos media nem sempre é positiva ou respeitosa, perpetuando estereótipos e invisibilizando realidades. É urgente que jornalistas, comunicadores e criadores de conteúdo adotem uma abordagem responsável: falar de suicídio sem romantização, contextualizar sempre o sofrimento, divulgar contactos de apoio, dar visibilidade a histórias de recuperação e esperança, e usar uma linguagem que valide identidades e experiências diversas.

“Ninguém deveria sentir que ser quem é o coloca em risco”, resume um comunicado da ILGA Europa. Uma vida que merece ser vivida é uma vida em que somos livres para ser inteiros. Defender a autenticidade das pessoas LGBTQIA+ não é apenas uma questão de direitos humanos, é um ato de preservação da vida.

As respostas exigem um esforço coletivo que não se limite ao espaço clínico, antes que sejam multidimensionais. Sim, urge uma educação mais inclusiva (incluíndo programas anti-bullying, educação sexual abrangente e representação positiva nas escolas), mais apoio familiar (projetos de sensibilização que mostrem o impacto salvífico da aceitação parental), capacitar mais profissionais de saúde mental e educação em questões LGBTQIA+, mais políticas públicas robustas (planos nacionais de prevenção do suicídio que reconheçam explicitamente a vulnerabilidade LGBTQIA+), e um maior fortalecimento comunitário: promover redes de apoio, grupos de pertença e visibilidade positiva. 

Mas mais do que linhas de apoio ou campanhas pontuais, esta problemática exige uma revolução na educação emocional: ensinar crianças a nomear sentimentos, adultos a procurar ajuda sem vergonha e comunidades a acolher a fragilidade alheia - transformar o pedir ajuda num ato de humanidade, não de fraqueza.

Enquanto não formos capazes de olhar para as emoções com a mesma naturalidade com que olhamos para uma ferida física, continuaremos a perder vidas para um mal invisível. Neste sentido, o suicídio é também um grito que revela: “não soube, não me permiti, ou não me deixaram, pedir ajuda”. E uma sociedade que ignora este grito está, ela própria, adoecida.

A prevenção do suicídio começa com pequenos gestos: expressar interesse genuíno pelo bem-estar do outro, oferecer escuta sem julgamento, criar ambientes acolhedores onde pedir ajuda não seja motivo de vergonha, e onde a expressão de certas emoções não seja vista como inadequada.

4. De Braga a Barcelona: Unidos pela Prevenção do Suicídio e pela Saúde Mental

Dentro e fora do consultório, grande parte do meu trabalho como psicólogo clínico e ativista tem sido dedicado a educar e empoderar pessoas, validando a unicidade das suas identidades e expressões, promovendo competências de autovalorização, consciência crítica e liberdade, para que vivam de forma plena e autêntica, sem medos ou vergonha. Este caminho começou em Braga, onde iniciei o percurso profissional em contexto clínico e comunitário, abrindo caminho para o compromisso que hoje mantenho com a saúde mental. Atualmente, resido na Catalunha, e aquí foi-me dada a oportunidade de colaborar com o Colors Sitges Link, uma associação de referência no apoio à comunidade LGBTQIA+, o que me permite continuar a desenvolver projetos de sensibilização e intervenção em contexto internacional. Foi desta vivência, entre Portugal e Espanha, que nasceu a vontade de criar um projeto partilhado e simbólico, que una estas duas realidades em torno de uma causa comum: a prevenção do suicídio. 

No intuito de assinalar o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio estabeleci, em Braga, uma parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade do Minho, o Hospital de Braga, e o CCD - Centro de Cultura e Desporto dos Trabalhadores da Segurança Social e Saúde; e em Sitges, com o Colors Sitges Link. 

Mostrando que a saúde mental e a prevenção do suicídio são desafios universais, capazes de atravessar fronteiras, o projeto pretende sensibilizar, informar e sobretudo dar voz às pessoas, através de várias iniciativas: (i) a difusão de cartazes e vídeos informativos nas redes sociais institucionais, com mensagens de sensibilização sobre prevenção do suicídio, sinais de alerta, estratégias de apoio e divulgação de recursos de saúde mental acessíveis e inclusivos; (ii) a publicação de um artigo informativo, aprofundando estas temáticas e disponibilizando materiais de referência para toda a comunidade; (iii) a construção de um mural coletivo, em espaços de visibilidade significativa, onde cada pessoa poderá deixar mensagens de esperança, resiliência e apoio; e a (iv) exibição de um vídeo com a partilha de testemunhos de sobreviventes de tentativas de suicídio, visibilizando histórias de superação e mostrando que pedir ajuda é um ato de coragem, contribuindo para combater o estigma associado à saúde mental.

Juntos, procuramos construir uma comunidade mais forte, segura e inclusiva, onde cada pessoa se sinta vista, valorizada e acompanhada. A prevenção começa pela conexão, e ninguém deveria enfrentar as suas lutas em solidão.

No dia 3 de setembro, reuni com dois testemunhos sobreviventes de atos suicidas - Fran (uma rapariga trans) e Derek -, no Centre LGTBI de Barcelona, para uma entrevista (os nomes forma alterados para proteger a sua identidade). As palavras de ambos, diferentes no tom e na experiência, convergem num mesmo eixo: a urgência de cuidado, de estruturas de apoio dignas e de uma escuta que não abandone.

FRAN: Quando a dor fala mais alto

Para Fran, a motivação subjacente a esta partilha nasce de uma recusa firme: “Não estou disposta a aceitar que as infâncias e adolescências queer cheguem a este limite, nem que alguém tenha de passar por isto”. Denuncia uma “epidemia que não queremos escutar”, alertando para o número “enorme” de mortes testemunhadas ao longo do tempo. No quotidiano, Fran descreve o equilíbrio delicado entre pedir ajuda e proteger quem a rodeia: muitas das pessoas a quem poderia recorrer “estão bastante mal”, e o receio de as sobrecarregar leva-a a gerir sozinha, por vezes, uma grande reatividade emocional: “[T]enho de fazer certos malabarismos na hora de conseguir chegar e partilhar com alguém tudo o que trago dentro, e além disso há dias em que o que trago é tão, tão, tão forte que não consigo ligar a ninguém. (...) Quando passa a tormenta, então já consigo ligar a alguém (…) muitas vezes não ligo para dizer que não estou bem; às vezes sim, outras vezes invento apenas uma desculpa, mas o simples facto de ouvir uma voz humana acalma-me imenso”.

Sobre o futuro, reconhece um horizonte possível, ainda que distante: as ideias autolíticas “persistem”, e a luta é a “de um David contra Golias”. Nesta travessia, a terapia é central: reorganiza, ajuda a compreender e, depois de compreender, permite gostar e perdoar-se um pouco, deixando de se tratar “como uma louca de manual” para se tratar como uma pessoa.

Fran sublinha ainda um princípio ético do cuidado: “Quando alguém se suicida, não se suicida porque quer suicidar-se. As pessoas que se suicidam têm um amor enorme à vida, o que acontece é que não aguentam o sofrimento que carregam”. Nesse momento “é a dor que fala”; por isso, acompanhar sem abandonar é vital. “Não estão sozinhos nem sozinhas, não estão, nem têm de estar, e eu prometo e asseguro que, quando no dia seguinte essa dor tiver acalmado, vão encontrar um pouco de paz”. E desaconselha: “não tentem, não vale a pena tentar. Eu sei o que implica, eu sei a paz e a calma que se sente com a tentativa feita, mas o que espera depois é extremamente cansativo”.

Em termos de políticas de apoio, Fran defende um ‘centro de crise 24 horas’, sem psiquiatras (e sem medicalização automática), mas com psicólogos, enfermeiros, auxiliares e integradores sociais. Um espaço de porta aberta no pico da dor, quer sejam “meia-noite, duas e meia da manhã ou três da madrugada”, onde seja possível “abraçar quem lá esteja, seja de forma profissional ou não profissional, seja como trabalhador ou como utente”. 

DEREK: Aprender a pedir ajuda é uma competência

Derek explica que decidiu partilhar agora a sua experiência por sentido de responsabilidade comunitária e por um processo de transparência que está a conduzir em terapia: “Foi importante para mim, tendo passado por uma experiência que foi um dos pontos mais baixos da minha vida, ajudar a apoiar outros para garantir que, daqui a vinte ou trinta anos, ainda estejam cá”. Retribuir à comunidade - em Barcelona e antes em Londres - tornou-se parte do seu caminho. 

A sua história começa num ambiente onde pedir ajuda era fraqueza. Isso moldou anos de silêncio e autossuficiência forçada: “Pedir apoio emocional era visto como uma fraqueza. Era muito aquela coisa de, se querias exprimir-te a fazer algo, e não o fazias da forma certa, tiravam-te das mãos. Não havia apoio. Até em algo tão simples como montar um móvel do IKEA. O ambiente em que cresci era: “não faças isso, dá-me cá”. Portanto, não cresci com apoio de alguém ao meu lado. Pedir ajuda foi muito difícil para mim durante a maior parte da vida, mas, nos últimos anos, com a maturidade, percebi que pedir ajuda não é mau. Porque tenho amigos, colegas, pessoas na minha vida que me pedem ajuda, e isso coloca-nos numa posição poderosa mas vulnerável. Em contrapartida, olhamos para nós próprios e pensamos: “Se tenho colegas ou pessoas que lidero no trabalho a virem pedir-me ajuda, seja profissional ou pessoal, porque não hei-de eu pedir ajuda?”.

Derek fala de um pós-crise com lacunas de memória, típicas da experiênca de dissociação: “Acho que é uma coisa que muita gente não percebe: quando chegam a uma crise em que sentem que já não querem viver e acabam por sobreviver, raramente se fala sobre a perda de memória que acontece. Pode ser à volta de um episódio específico, ou dias, semanas ou meses depois. Para mim, pessoalmente, apagou quase toda a minha infância, quase toda a minha adolescência e grande parte dos meus vinte anos”. Lembra pessoas, lugares e coisas, mas não as consegue ordenar, o que abalou a identidade e tem sido trabalhado em terapia. 

Sobre o apoio institucional que recebeu após a tentativa, é categórico: “básico”, centrado em medicação e consultas rápidas, sem mergulho nas causas. “Continua a ser básico, mesmo agora, e o acesso a bons cuidados de saúde mental ainda é muito limitado. Nas empresas, dão seguros de saúde, passes de ginásio, mas consultas de psicologia? Limitam a 15 sessões. Isso não é nada Eu dispensava o passe do ginásio para ter mais 15 sessões”. O que gostaria que os profissionais fizessem? Levar a sério as tentativas e investigar a história de vida, as raízes do estado mental, e não apenas o episódio. Defende psicólogos permanentes nas organizações, lembrando casos em que cuidar primeiro da saúde mental transformou, depois, o desempenho no trabalho. 

Perguntado sobre como se mantém longe dos estados de espírito mais obscuros, Derek destaca que aprendeu a pedir ajuda e a exprimir-se: “Aprendi a exprimir-me com amigos, parceriass - nem sempre da forma mais saudável, mas é um processo. Passei um quarto da minha vida sem poder exprimir-me, e agora estou a aprender tarde. Tenho 38 anos, não me deixaram ser criança, não me deixaram ser emocionalmente disponível. É difícil. Invejo quem parece emocionalmente estável, porque é uma competência. Mas pode-se aprender, e também ensinar. Gosto de ouvir os outros, tal como gosto de ser ouvido. Atendo sempre o telefone, porque nunca se sabe quando alguém precisa mesmo. Uma coisa que aprendi é isso: estar disponível pode salvar alguém”. Como mensagem final, deixa um roteiro simples e urgente: “pega no telefone e fala com alguém” - amigo, linha de apoio, serviços públicos ou profissionais privados. Insiste: “se uma porta não abre, bate a outra. Se surgem pensamentos como “para que estou aqui?” ou “qual é o meu propósito?”, é o momento de pedir ajuda já. Eu não o fiz na altura; agora aprendi”.

Em comum, Fran e Derek mostram que sobreviver requer acesso imediato, escuta informada, redes de apoio e espaços sem julgamento. A sua voz conjunta lembra-nos que prevenir é cuidar a tempo, acompanhar sem abandonar e garantir meios reais - desde centros de crise até à terapia continuada - para que mais pessoas permaneçam e não percam a esperança.

5. Reconhecer os sinais e ajudar alguém que está a contemplar o suicídio

As adversidades da vida podem ser difíceis e desencorajantes, mas por entre elas surgem sempre possibilidades inesperadas de recuperação, revalorização e mudança otimizadora. A luta contra o suicídio implica, necessariamente, dizer e mostrar, como sociedade, que cada vida tem valor, que cada identidade merece respeito e que viver plena e dignamente é um direito inalienável e uma afirmação de que, sim, a vida merece ser vivida.

Nem sempre é fácil perceber quando alguém que conhecemos está a pensar em acabar com a própria vida. Muitas vezes, o sofrimento é silencioso, mas existem sinais de alerta que podem ajudar-nos a estar mais atentos. Entre eles estão: 


1. Sinais Verbais (o que a pessoa diz):

- Falar sobre morte, suicídio ou querer acabar com a vida;

- Frases como: “Queria desaparecer.”, “A vida não vale a pena.”, “Vocês ficariam melhor sem mim.”;

- Falar frequentemente sobre culpa, inutilidade ou sentir-se um fardo;

- Expressar desespero e falta de esperança (“Nada vai melhorar”, “Não vejo saída”).


2. Sinais Comportamentais (o que a pessoa faz):

- Isolamento social: afastar-se de amigos, família e atividades;

- Mudanças bruscas de humor: euforia repentina após um período depressivo pode indicar decisão de suicídio;

- Alterações nos hábitos: sono em excesso ou insónia, perda ou aumento de apetite;

- Descuido com a aparência ou higiene pessoal;

- Aumento do consumo de álcool ou drogas; 

- Distribuir objetos pessoais importantes ou “despedir-se” de pessoas próximas;

- Pesquisar meios para morrer (online ou offline);

- Automutilação ou falar sobre dores físicas constantes sem causa aparente.


3. Sinais Emocionais (o que a pessoa sente e demonstra):

- Tristeza profunda e persistente;

- Ansiedade intensa;

- Sentimento de desesperança ou vazio;

- Raiva ou irritabilidade frequente e inexplicável;

- Sentimento de desamparo e de não ter alternativas.


4. Sinais em Populações Específicas:

- Adolescentes e jovens: bullying, cyberbullying, rejeição familiar (especialmente na comunidade LGBTQIA+), baixo rendimento escolar;

- Adultos: desemprego, crises financeiras, separações, perdas significativas;

- Idosos: doenças graves ou crónicas, solidão, perda de autonomia.


5. Sinais de Urgência (procure ajuda imediata):

- Plano específico para tirar a própria vida;

- Acesso a meios letais (arma, medicamentos, locais perigosos);

- Despedidas claras (cartas, mensagens finais);

- Tentativas prévias de suicídio.


O que fazer para ajudar? Ajudar alguém que possa estar a contemplar a ideia de uma morte autoinfligida poderá parecer assustador, mas a tua presença e atitude podem fazer toda a diferença. Muitas vezes, pessoas nesta situação, sentem-se sozinhas, incompreendidas e sem alternativas. Mostrar que não estão sozinhas pode ser um primeiro passo poderoso.

1. Escuta sem julgar: Permite que a pessoa fale sobre o que sente, mesmo que seja doloroso ouvi-lo. Não minimizes a dor dela nem ofereças soluções rápidas. Frases como “isso vai passar” ou “tens de ser forte” podem aumentar o isolamento. Em vez disso, talvez possas querer usar expressões como “estou aqui para ti” ou “o que estás a sentir é importante”;

2. Leva a sério cada sinal: Nunca ignores ou desvalorizes uma frase que possa indicar risco, como “não aguento mais” ou “a vida não vale a pena”. Perguntar diretamente sobre pensamentos suicidas não incentiva o suicídio - pelo contrário, dá à pessoa um espaço seguro para partilhar o que sente;

3. Incentiva a procura de ajuda profissional: Sugere acompanhamento psicológico ou psiquiátrico e, se possível, oferece-te para ajudar na marcação da consulta ou para acompanhá-la. Em situações de emergência, contacta os serviços de urgência (disponibilizados abaixo);

4. Está presente e acompanha: Manter contacto regular, demonstrar interesse genuíno e acompanhar a pessoa no processo de recuperação pode ser decisivo. Mostrar que a vida dela tem valor para ti reforça a ideia de que não está sozinha;

5. Cuida também de ti: Apoiar alguém em sofrimento intenso pode ser emocionalmente exigente. Procura apoio, se necessário, e lembra-te: dois náufragos não se podem ajudar - cuidar de ti é essencial para poderes cuidar do outro.

Falar sobre suicídio salva vidas. Ao oferecer escuta, compreensão e apoio prático, podes ser o elo que impede alguém de ceder à dor. Nunca subestimes o poder de estares presente.

.6 "Fica. Vamos Atravessar Isto Juntos"

Se estás a contemplar o suicídio, permite-te um momento e lê estas palavras com atenção: É passo a passo. E não há problema nisso – na verdade, é esperado que assim seja. Muitos e muitas de nós já aqui estivemos: neste momento tudo parece pesado demais, sem saída, sem futuro, como se a dor não prometesse intervalo, como se ninguém pudesse realmente entender o que estás a viver. Desistir parece a única forma de parar o sofrimento. E sim, o que estás a sentir é real, mas não é permanente. 

Muitos/as de nós dizemos a nós mesmos/as que nada mudará. E, ainda assim, descobre-se, com o tempo e com o apoio certo, que a vida volta a ter significado - mesmo depois de muita dor, mesmo que agora pareça impossível acreditar nisso. Mas não estás sozinho/a - e isso tem de valer algo: esperamos por ti. Pedir ajuda não significa fraqueza; significa que ainda existe em ti uma parte que quer viver, uma parte que quer tentar. Isso é coragem, mesmo que agora não pareça. Dá-te a ti mesmo o benefício de mais um momento. Dares um próximo passo pode ser o primeiro passo para te reencontrares. Liga agora para alguém da tua confiança. Se falar for já demais, envia simplesmente uma mensagem curta: “Não estou bem, preciso de ti.” ou “Preciso de ajuda”. É o suficiente para que alguém possa começar a estar ao teu lado. E mesmo que não consigas falar sobre o que te atormenta, permite-te apenas usufruir da companhia silenciosa da outra pessoa. Se não conseguires estabelecer contacto com alguém próximo, contacta um serviço de apoio:

Contactos Úteis - Saúde Mental e Prevenção do Suicídio   

 Emergências (ambulâncias, bombeiros, polícia): 112 - Apoio Emocional e Prevenção de Suicídio;

    • Linha Nacional de Prevenção do Suicídio: 1411 - gratuita e disponível 24h;

    • SOS Voz Amiga: 213 544 545, 912 802 669 ou 963 524 660 - disponível todos os dias das 16h às 24h; 

    • Linha SOS Estudante: 915 246 060, 969 554 545 ou 239 484 020 - todos os dias das 20h às 1h; 

    • Voz de Apoio: 225 506 070 - apoio emocional gratuito e confidencial;

    • Linha de Apoio LGBTI+: 218 873 922, 969 239 229 - anónimo e confidencial, quintas e sextas, das 20h às 23h, também em WhatsApp;

    • Vozes Amigas de Esperança: 222 080 707 - 20h às 23h;

    • Conversa Amiga: 808 237 327 ou 210 027 159;

    • Apoio Psicológico (SNS24): 808 24 24 24 - linha de aconselhamento, disponível diariamente;

    • Telefone da Esperança: 222 030 707 ou 960 340 851 - atendimento emocional sensível;

    • Telefone da Amizade: 228 323 535 - apoio emocional;

    • Centro Internet Segura: 800 219 090.


E, enquanto esperas, respira. Respira apenas, um momento de cada vez. Deixa que alguém caminhe contigo, até que consigas acreditar, de novo, que vale a pena continuar. Porque vale a pena.


Sempre contigo,
Carlos Marinho 

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