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O PREFÁCIO DA CRIATIVIDADE: INSIGHTS SOBRE A "OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES"

Há um termo extraordinário que é: ocupação dos tempos livres. Ou seja, há tempos livres e se ocuparmos os tempos livres eles deixam de ser ocupados. (…) o medo do espaço vazio, hoje, por exemplo, é raro as crianças terem um espaço vazio. Têm já brinquedos, estruturas… o próprio espaço está ocupado a dizer o que é que elas devem fazer. Esta ideia da criança não se aborrecer… o prefácio da criatividade é o aborrecimento, o tédio. A criança tem que inventar, criar, criar algo para combater o tédio. As crianças de hoje não têm tempo de ócio, o tempo da criança hoje é de negócio. Tempo útil, utilizável. Ou seja, e de acordo com a etimologia da palavra, o latim, negar o ócio” [Gonçalo M. Tavares]

E que dizer então de nós, crianças grandes, os adultos. Quando foi a última vez que ficou apenas sentado/a, sem nenhum aparelho na mão? Ou que passeou apenas a ouvir os sons que o/a rodeiam? Ou conversou com alguém sem desviar os olhos para um ecrã?

A excessiva ligação digital provoca várias consequências negativas no nosso desenvolvimento, como a inibição de algumas competências pessoais e sociais, o que nos penaliza as relações. O resultado é a perda da espontaneidade e de oportunidades únicas de experimentar estratégias diferentes para resolver conflitos, não desenvolver a criatividade nem o pensamento crítico. Diminui a motivação pelo jogo simbólico e pelo brincar. E precisamos tanto de brincar, adultos!

O silêncio é essencial para estarmos em contacto conosco mesmos/as: entendermos a nossa subjetividade psíquica, percebermos bem as nossas necessidades, os nossos desejos, as nossas coordenadas existenciais. Permita-se deixar, por momentos que seja, o ruído do ‘tempo útil’ para trás e faça um detox digital.

Sören Kierkegaard foi um dos grandes filósofos do século XIX, considerado por muitos o primeiro existencialista. Kierkegaard foi extremamente prolífico e penetrante relativamente a uma série de temas, desde a psicologia à liberdade, ética, fé e teologia. No número dos seus escritos, contam-se as ideias de que: “a ciência e a academia ensinam o caminho da objetividade”, mas “a religião ensina o caminho da subjetividade”, de como todos/as temos uma relação pessoal com o infinito, sendo que o ‘mundo do espírito’ só é passível de revelação por um caminho de introspeção, de paciência e de meditação.

A importância do silêncio em Kierkegaard não pode ser sobrestimada: pense-se no facto de ter escrito um dos seus textos mais importantes sob o pseudónimo de Johannes de Silentio, numa constante alusão e retorno ao silêncio e à esperança, em obediência (palavra que significa "escutar": ob-audire).

Esta é, talvez, uma das frases mais citadas de Kierkegaard: “O estado atual do mundo e da vida em geral é de doença. Se eu fosse um médico e me pedissem a minha opinião, eu diria: "Criem silêncio". O remédio há quase 200 anos era fazer silêncio para que se ouvisse o essencial e se permitisse uma conexão com o infinito. Hoje parece ainda mais urgente fazer-se silêncio, pois não só há mais barulho por todo o lado – devido ao crescimento industrial e ao mandato económico de constante produção – como também há menos vontade de estabelecer essa relação com o espírito ou com o infinito.

Duplo ruído, acrescente-se: o tecnológico e o ideológico; não apenas as constantes rajadas de máquinas, mas também o barulho do insignificante, o burburinho do inconsequente, do entretenimento constante e da banalidade, o que Kierkegaard chamou de “snakke”.

O poeta sufi Rumi diz o mesmo na sua máxima: "Talvez você esteja a procurar nos galhos o que apenas pode ser encontrado nas raízes". Talvez a distração, o entretenimento e a dedicação para alcançar o sucesso mundano sejam um rodeio, um desvio que nos faz nunca chegar ao centro.

 "A questão decisiva para o homem é se ele está relacionado a algo infinito ou não", firma Jung. Certamente não podemos relacionar-nos com algo infinito se não criarmos silêncio. E se não nos relacionarmos com algo infinito, a nossa vida será trivial, fútil, e até mesmo uma absurda perda de tempo (tempo que não é dinheiro, tempo que é “kairós”: o momento oportuno da descoberta).

Kierkegaard escreveu, num texto que pode ser traduzido como "Duas Idades: "Só a pessoa que pode permanecer essencialmente silenciosa pode essencialmente falar, pode essencialmente agir. Silêncio é interioridade... A orientação interior do silêncio é a condição para uma conversa cultivada". Somente a partir da quietude interior podemos relacionar-nos plena e significativamente com o mundo exterior e estabelecer uma relação pessoal íntima.

Arnold Kone resume bem o pensamento de Kierkegaard em relação ao silêncio: ele diz-nos para pararmos de ouvir todas as vozes do mundo finito, para ouvirmos o silêncio em toda a sua tenebrosidade, e a voz virá. E com ela, a força e a coragem de 'obedecer' às exigências íntimas e individuais da visão pessoal de cada Self.

NOTA:

Enquanto isso, ajude também as crianças mais pequenas. Estipule um local – a que podem chamar de “Ser feliz offline” –, onde todos possam largar os telemóveis: durante a refeição, um filme ou jogo em família. As férias de Verão são uma altura ideal para os detox digitais. Todos beneficiam em melhorar a qualidade de tempo em família como em fazer atividades em conjunto, em detrimento das individuais, ligadas a ecrãs. Apesar da resistência inicial, estas​ experiências são bastante apreciadas. O/A seu/sua filho/a vai perceber que perder coisas online não é nada de especial e, em contrapartida, ganha a família. Isto, claro, desde que a família esteja realmente presente e disponível.´

Saiba mais em consultório.

Aqui para si.

Com estima,
Carlos Marinho



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