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A DEPENDÊNCIA DAS TECNOLOGIAS: DA COMPREENSÃO À INTERVENÇÃO

Um estudo do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), feito por uma equipa liderada pela psicóloga e investigadora Ivone Patrão, revela que quase três quartos da população portuguesa dos 13 até aos 25 anos (73,3%) apresenta sintomatologia indicadora de risco de dependência do mundo digital – trata-se, segundo assinala Patrão, de um número superior à média internacional, excluindo os casos da China e do Japão –, enquanto os restantes 13% exibem níveis severos de dependência.

Esta dependência manifesta-se através de: (i) um grau elevado de importância conferido ao computador e/ou aos dispositivos móveis; (ii) uma precedência do comportamento de uso de tecnologias sobre outras atividades; (iii) sofrimento significativo e/ou prejuízo no funcionamento pessoal, familiar, social, educacional ou ocupacional (incluindo isolamento, perturbação dos padrões de sono, problemas de dieta e deficiência na atividade física); (iv) sintomas de abstinência face ao não uso (como irritabilidade, dores de cabeça, agitação e por vezes agressividade) e, em casos mais extremos, recaída face às tentativas sucessivas para parar. 

O QUE MOTIVA ESTA DEPENDÊNCIA?

1: Exposição precoce das crianças/jovens às tecnologias: Ao analisar o impacto da televisão nos processos de socialização, Neil Postman defende que a distinção entre infância e adultez se fundamenta na existência de âmbitos desconhecidos, de segredos – segredos acerca da vida sexual, do dinheiro, da violência, da morte e da doença; todos eles eram guardados e iam sendo progressivamente revelados, à medida que a criança/jovem estava em condições de ter acesso ao seu conhecimento. Atualmente, as extensas possibilidades da tecnologia revelam já todos os segredos da vida adulta, sem respeitar idades nem sensibilidades, quebrando o fascínio do mistério, o encanto do tabu, a magia da incerteza, o que não raro se traduz em falta de motivação e tédio. 

O estudo conduzido por Ivone Patrão mostra que as crianças começam a ter contacto com a internet aos 6 anos de idade, enquanto a média dos seus pais aponta para os 24. Na verdade, o uso de tecnologias em contexto escolar, na realização dos trabalhos de casa, a que se seguem depois as mensagens digitais e os jogos como dinâmica lúdico-recreativa, tornaram-se já práticas normalizadas na sociedade. A par do contacto cada vez mais precoce que as crianças/jovens estabelecem com a tecnologia, parece assistir-se a um crescente desinvestimento no ato de brincar, e noutro tipo de atividades de lazer, como passeios, idas ao parque, contacto com a natureza, picnics, enfraquecendo o sentido de gozo da criança/jovem pela realidade e o seu prazer na exploração do mundo. 

2: Dificuldade/Resistência em reconhecer o problema: A despeito das complexidades que se percebem associadas a este comportamento, muitos são os casos que mostram resistência ao reconhecimento do problema o que, pelo menos parcialmente, pode também ser explicado pela própria fase de desenvolvimento dos jovens, sobretudo adolescentes afetos a testar limites. 

3: Uso como forma de refúgio: A minha experiência clínica sugere que a ‘dependência’ ou uso indiscriminado das tecnologias não é tanto causa, mas sim consequência de várias situações problemáticas: 

3.1: Em resposta à percebida indisponibilidade afetiva dos pais: Num recente artigo de opinião, onde verso sobre o impacto das redes sociais nos padrões de comunicação e relação das famílias [por aceder ao artigo, por favor siga o link: https://plataformafamilia.pt/a-melhor-rede-social-ainda-e-uma-mesa-rodeada-de-amigos/], escrevo que há uma “crescente diminuição do tempo real que os adultos passam com as crianças, a sua substituição por outras instituições (escolas, creches, centros de estudo) e/ou pela exposição (cada vez mais precoce) a meios de comunicação, crescentemente remodelados e redefinidos pela internet”.

Entre adultos, a distinção entre os momentos de trabalho e os de lazer fazem-se já pela mera troca de dispositivos: fecham-se o e-mail e os programas de computador, abrem-se as redes sociais. Ainda que fisicamente presentes, nem sempre os pais estão efetivamente disponíveis, do ponto de vista emocional, para os seus filhos. É assim que “nasce um dos problemas mais sérios que a atualidade oferece à formação de cada cidadão: o adoecimento do afeto”, manifesto em problemáticas como as perturbações da intimidade, a passividade na resolução de problemas, o isolamento, e a solidão. 

Focados em si e nos seus afazeres, sejam eles de natureza laboral e/ou de lazer, muitos pais acabam por estranhar-se dos filhos, perdendo oportunidade de perceber e satisfazer adequadamente as suas necessidades afetivas. Um estudo realizado com 1.521 crianças de 6 a 12 anos, levado a cabo pela Highlights, uma revista infantil norte-americana, mostrou que 62% das crianças reclamam que os pais passam mais tempo distraídos com as tecnologias do que verdadeiramente disponíveis para elas; enquanto 28% dos casos estavam associados exclusivamente ao uso do telemóvel, nos restantes 51%, o distanciamento era sustentado pelo uso conjunto de telemóveis, televisões, smartphones e tablets.

Por outro lado, dado que muitos pais possuem conhecimentos limitados acerca do funcionamento e do impacto das novas tecnologias da informação, tal como a internet, percebe-se que haja uma menor supervisão sobre os filhos, levando a que não se perceba como importante o estabelecimento de horários, nem o uso seguro de semelhantes tecnologias (“Ele lá sabe mexer naquilo”).  

Num outro – e igualmente problemático – extremo das dinâmicas educativas, encontramos pais superprotetores, que vêm na dedicação que os filhos prestam ao ecrãn de computadores, telemóveis, smartphones e/ou tablets, no sossegado conforto dos seus quartos, formas tranquilizadores de securização contra os percebidos perigos do mundo externo (e.g., ‘más companhias’, consumo de tabaco e drogas); no entanto, importa alertar para os riscos desta ‘constante janela para o mundo’: 

(i) o fenómeno do cyberbullying [isto é, o assédio moral que corresponde à manifestação de práticas hostis (via tecnologias da informação), com o intuito de ridicularizar, assediar e/ou perseguir alguém de forma exacerbada]; 

(ii) a possibilidade de se estabelecerem contatos com pessoas mal-intencionadas (que usam o e-mail, salas de chat e redes sociais para acederem às crianças); 

(iii) o incentivo à atividade ilegal da pirataria (muitos sites de partilha de conteúdos piratas, associam aos ficheiros conteúdo malicioso como vírus adware trojans), bem como à realização de compras não autorizadas pelos pais; 

(iv) a exposição fácil a conteúdos impróprios (a violência, o racismo, ideais extremistas e a pornografia).

Estudos semelhantes aos da Highlights, como o da AVI Technologies, reforçam o alerta para os desafios que as novas tecnologias colocam às tarefas de uma parentalidade sadia, nomeadamente, saber e conseguir equilibrar a dimensão do afeto com a do controlo. Embora saibam que devem encorajar a capacidade de exploração e afirmação autónoma dos filhos, muitos pais enfrentam autênticos «braços de ferro» ao tentar impor as suas regras de forma bem-sucedida. Não raro, recebo pais em situação de bastantes dificuldades no pensar e na aplicação firme, consistente e sistemática de regras, apoiando a capacidade de autorregulação dos filhos. Com efeito, as crianças precisam de barreiras, porque se sentem seguras dentro delas. Por outro lado, não é desejável que a autoridade parental se firme pelo autoritarismo, pelo recurso à violência ou à ameaça. A validarmos a ideia de que o uso dos jogos, e/ou da tecnologia em geral, possa estar a suprir uma necessidade da criança/jovem, não será boa política proceder à retirada do computador nem à imposição rígida de um limite exagerado, o que tende a despertar mais tensões. Conforme Ivone Patrão, “É preciso fazê-lo ganhar o gosto por atividades alternativas, antes de diminuir o tempo online”. 

3.2: Em resposta ao isolamento social: A independência em relação à família é uma tarefa desenvolvimental essencial à fase de ingresso do jovem na idade adulta. Na medida em que o indivíduo passa de uma orientação individual (família) para uma orientação interdependente de um “eu” (mundo social), em que os amigos e colegas vêm substituir o papel anteriormente ocupado pelos pais, esta fase comporta, inevitavelmente, bastante ansiedade e inquietude. Na minha prática clínica é frequente encontrar estas dificuldades entrosadas a perturbações de ansiedade social, sobretudo se se não tiverem adquirido boas competências sócio-emocionais, e de autovalorização (e.g., autoestima e autoconfiança). Entre os jovens reveladores de sinais de dependência inquiridos do estudo conduzido por Ivone Patrão, cerca de um quarto (22,1%) apresenta elevados níveis de isolamento social e, por vezes, de depressão. Nestes casos, o mundo digital é percebido como um refúgio compensatório, sendo que é online que muitos jovens satisfazem as suas necessidades de contato social. 

3.3: Em resposta à pressão social: Quanto mais dificuldades se perceberem na socialização da criança/jovem, maior será o impacto negativo sobre a sua capacidade de autovalorização (e.g., autoestima e autoconfiança), e mais ela tenderá a isolar-se, refugiando-se nas tecnologias (particularmente, nos jogos). Quanto mais se aperfeiçoar nessa arte, quanto mais se perceber competente nela, maior o reforço sobre a sua autoconfiança e, com ela, a fuga para o mundo digital; aqui, a pressão social para serem aceites leva-as a permanecerem constantemente ligadas, mantendo-se o ciclo vicioso. Alguns dos casos mais problemáticos de dependência surgem associados a jogos multiplayer (por exemplo, «Fortnite», «World of Warcraft», e «Leagues of Legends»), especialmente viciantes pois por regra não têm fim ou conclusão final. 

4: O desejo de se profissionalizar como gamer (jogador): É o sonho de muitas crianças e jovens tornarem-se gamers profissionais. Jogar para viver não é só diversão: é necessário tempo, habilidade e determinação para vencer nos atuais circuitos de competição. Atualmente, os gamers profissionais competem em todo o mundo – alguns tentando ganhar milhões – em eventos como o circuito da Major League Gaming (MLG), The International Dota 2 Championship e Intel Extreme Masters. Rumay “Hafu” Wang, por exemplo, começou nas competições de games aos 14 anos. Agora com 23 anos, faz uma retrospetiva da evolução da sua carreira – de competições em equipa, viajando pelo mundo com Fnatic, para converter-se numa streamer no Twich, a tempo inteiro. “Streaming é muito mais tranquilo”, diz ela em entrevista, acrescentando que joga até 12 horas por dia no conforto da sua casa. “Podes trabalhar ao teu próprio ritmo, ouvires a tua própria música e seres o teu próprio chefe”. Acima disso, porém, há outras responsabilidades a gerir, nomeadamente as tarefas escolares, a participação nas lides domésticas e a estabilização da rotina diária. É possível um complemente entre os dois mundos, desde que devidamente equilibrado.

COMO INTERVIR:

Torna-se importante consciencializar as crianças e jovens para a problemática da dependência, sensibilizando-os para a sua identificação, compreensão dos seus fatores de risco, e formas de fazer um uso saudável destes dispositivos. Além da proibição do uso da tecnologia não ter, em si, o poder de travar a dependência, fazê-lo impediria o uso de recursos sem os quais, na atualidade, se torna praticamente impossível viver, o que não resultaria numa estratégia assisada. Aqui, o envolvimento da escola (através, nomeadamente, da disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação) seria uma mais-valia a considerar-se. 

Propõe-se, assim, a criação de uma regulação informal dentro de cada família para o uso da internet e das redes sociais (e.g., adequada gestão do tempo, marcação de horário específico como regra a cumprir-se; contrato de cumprimento de regras associando-lhes recompensas e punições no caso respetivo de cumprimento e incumprimento; negociação de horas de uso intervaladas com outras tarefas; e participação das atividades digitais com os menores).Por seu turno, o estabelecimento de rotinas, e de hábitos (horas das refeições, da sesta, hora do banho e de se deitar) permitirá uma estabilidade, e logo, tranquilidade para a criança, o que facilitará a sua capacidade de autorregulação.

Na aplicação desta regulação informal, é altamente recomendado que a postura dos pais seja firme, consistente e sistemática, atuando em conformidade com o padrão definido, e não conforme o estado de humor naquele momento; se as crianças vão olhar para os pais para saberem como ser, vão ouvi-los para saberem o que dizer, vão imitar os seus modelos, pelo que é crucial os adultos serem o modelo dos comportamentos que querem que os seus filhos executem. 

Recomenda-se que os pais evitem o recurso a estes dispositivos como formas de serenar/aquietar a criança. Brincar, jogar, correr, saltar, dançar, brincar no parque ou na praia ajudam a criança a libertar energia física e emocional. É pois necessário incentivar a criança ou jovem a desenvolver outras atividades do seu interesse, que permitam resgatar o contato humano direto, antes de diminuir o tempo online, organizando programas de ativação comportamental (e.g., momentos de conversa entre familiares, amigos e meios sociais que as pessoas frequentam, passeios, jogos, novas brincadeiras), e alternando-os com o uso das tecnologias. Caso os filhos mostrem interesse em se profissionalizarem como gamers, é importante validar os seus interesses, mas educá-los no sentido da moderação. 

Em Portugal, o Plano Nacional dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020, aprovado pelo Conselho de Ministros, prevê o alargamento da área de intervenção do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) às dependências sem substância como o jogo ou a Internet.

É já indiscutível para a psicologia crítica a percebida tendência para se categorizarem comportamentos humanos em tipologias patológicas, mesmo aqueles que outrora eram considerados ‘normais’, de onde um estado-de-arte em que “nunca se assistiu a tanta doença mental com tão pouca doença” (Gonçalves, 2001). A controvérsia persiste. No entretanto, o modo de existir mentalmente perturbado não interessa tanto como categoria nosológica, nem como diagnóstico, mas sim como forma de compreender as estratégias que as crianças, jovens e adultos utilizam para resolver as suas dificuldades – e ajudá-las nesse processo.

Com estima,

Carlos Marinho

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