A LONGA CAMINHADA | A 3 de agosto de 2020 foi divulgado pelo Facebook o primeiro teaser videográfico da ‘EXPERIÊNCIA ROSA’, contendo o título do projeto, uma referência à cidade de Braga “en toute intimité”, e cerca de dez segundos de um instrumental do clássico de Edith Piaf. Tratava-se do críptico início de uma pequena campanha publicitária que se prolongaria, por meio de montagens fotográficas e teasers crescentemente elaborados, até ao dia 7 de setembro, data em que o lançamento do vídeoclip para o cover do celebrado ‘La Vie en Rose’ anunciou o arranque oficial do projeto. De então a esta parte, e durante três meses, dezasseis instituições bracarenses, destacadas pela sua representatividade nos domínios da arte, da cultura, da saúde, e do humanitarismo, aderiram muito generosamente à iniciativa. Embora esquematizada para não ultrapassar em demasia o mês da rentrée e desaconselhavelmente colidir com o ‘Outubro Rosa’ da Liga Portuguesa Contra o Cancro, basta que se saiba, para pedir à providência as justificações necessárias, que entre a intenção e o ato de finalizar a empreitada, se foram interpondo numerosos obstáculos externos à nossa esfera de controlo: a agudização da situação pandémica não só atrasou negociações como invalidou outras e, no compasso de espera por uma aberta favorável, novos projetos tomaram a dianteira, lentificando a desejada agilização.
Hoje, porém, na sequência do esforço de adaptação e readaptação aos constantes jogos da imprevisibilidade, estamos profundamente gratos/as pelo sucesso que juntos/as alcançámos. Olhando em retrospetiva, neste «após» que permite o distanciamento, a revisitação e o reconhecimento, decidi partilhar algumas reflexões gerais sobre a experiência da EXPERIÊNCIA ROSA. Samuel Butler, um famoso escritor britânico, vaticinava no século XIX, que “Se as pessoas ousassem falar entre si sem reservas, haveria muito menos tristezas no mundo dentro de cem anos”. Este era o propósito último do nosso trabalho: propiciar uma experiência de abertura ao Outro, através do diálogo amável, sustentado por uma dádiva desinteressada. Começou por impressionar-nos a quase geral disposição inicial para a resistência face à ideia do projeto, o que invariavelmente culminava numa suspicaz sondagem quanto à existência de interesses secundários (“o que ganham com isto?”). Embora semelhante disposição se compreenda no esquema de uma assisada cautela diante de possíveis esquemas e logros, tendo a concordar com a Dra. Isabel Silva, diretora do Museu dos Biscaínhos e do Museu D. Diogo de Sousa, sobre como as pessoas “não estão habituadas a receber e a agradecer”.
A ARTE DE RECEBER | O afeto do ser humano é uma virtude preciosa, e a gestão dos seus investimentos precisa de ser feita com o máximo cuidado. Haverá quem se furte às suas delícias por temer os potenciais danos de um mau investimento; haverá quem boicote as oportunidades de demorá-lo nas relações receando ser rejeitado/a ou maltratado/a. Há-os/as para quem se torna mais fácil deprimir do que enfrentar a tristeza de uma não-reciprocidade; há-os/as para quem seja mais cómodo cair em ansiedade do que enfrentar o medo que semelhantes feridas poderão provocar. Mas como ainda há pouco me recordou uma amiga, “ninguém se faz pessoa no alto do Everest”; sem uma ética voltada para a alteridade extraviamo-nos do nosso próprio sentido de individualidade, pelo que devemos abrir caminhos para ir ao encontro do Outro, e estar onde as pessoas estão. A gestão otimal dos nossos investimentos afetivos só se treina numa lógica de encontro, e nunca numa de evitamento – como qualquer outra virtude, o amor deve ser aprendido e trabalhado, caso contrário torna-se disfuncional por falta de uso. Para sermos bem-sucedidos nesta tarefa, importa praticarmos uma atitude de recetividade, de acolhimento e de disponibilidade ao Outro, na sua igualdade e na sua diferença. Por outro lado, vivemos hoje no contexto de uma sociedade onde muito e em demasia se idolatra um ‘Eu’ substancialista, servida por uma ética de libertação pessoal e de autorrealização sem precedentes, mas toxicamente pervertida para uma diminuição do diálogo, do espírito de tolerância e da solidariedade ativa. Talvez as expressões de gratidão impliquem o conhecimento de que dependemos uns dos outros para o nosso bem-estar, contrariando desconfortavelmente o espírito individualista. É hoje com preocupação que se percebe como o desinvestimento afetivo vai gerando uma crescente estranheza face ao que é do domínio das emoções e das competências sócio-emocionais, uma crescente estranheza ao caráter ativo do Amor – que consiste, antes de tudo, em dar, não em receber: dar de nós mesmos/as, do nosso tempo, da nossa compreensão, do nosso conhecimento, dos nossos sentimentos, da nossa hospitalidade. Vamos desaprendendo a cuidar e, consequentemente, as relações interpessoais tornam-se mais fugazes e banais, mais destituídas do seu carácter direto e humano.
Pretendia-se que a EXPERIÊNCIA ROSA fosse entendida como solicitação, como interpelação ética, como chamamento de um Outro, anterior a toda a criação do “Eu”, como exercício de amor. Ao exaltarmos, com ela, a importância da nossa responsabilidade na gestão do bem comum, pontuávamos fundamentalmente a capacidade de sermos respondentes ao Outro. Como Patrycia Furtado, uma das nossas mais fieis seguidoras fez notar, o projeto é “esperança ativa, esperançar fazendo, caminhando e é, também, um convite a todos nós, a nos ocuparmos em festas de carinho e cuidado mútuos”. Mais do que sermos o dedo que aponta, importa sermos a mão que efetivamente ampara: e todos/as nós dispomos dessa capacidade. Na medida em que o pressuposto básico do projeto é o de uma ação humanitária, a aceitação do convite da EXPERIÊNCIA ROSA transcenderia sempre a especificidade de qualquer agenda ou estratégia de divulgação das instituições contactadas; não houve nunca nela o que não fosse de índole social. Falhar esta compreensão era falhar por completo o sentido da iniciativa. Embora o processo de articulação com algumas instituições tenha sido feita por referenciação de outras – o que não permite uma noção perfeitamente esclarecida do peso do efeito de desejabilidade social envolvido – importa considerar que a ‘referenciação por terceiros’ não deixa de ser um recurso válido de que todos/as nós, nas nossas vidas privadas, nos servimos para aceitar o risco de confiar no Outro. Mais do que isso, porém, e definitivamente, a autenticidade dos acolhimentos tornou-nos percetível a transmissão efetiva da mensagem. Nas dezasseis instituições que captaram o sentido da EXPERIÊNCIA ROSA, a suspicácia em breve passou a dar lugar a um crescente voto de confiança, e à capacidade de fruição da giftbox – o pretendido objetivo máximo.
Do número de apreciações que os nossos destinatários
amavelmente nos fizeram chegar, destacamos com orgulho descrições como: “[uma] iniciativa tão gentil e tão
deliciosamente cuidada” (Dra. Isabel Silva), “um projeto muito inovador” (Dra. Fátima Soeiro), “um fantástico projeto e desafio (…) que
eleva o nome da nossa cidade” (Dr. Ricardo Sousa),“[uma] excelente iniciativa”
(Dra. Eduarda Palmira), ou “[uma] ímpar
experiência” (Dra. Elsa Dourado). Na mesma linha, quererei aqui fazer um
shout-out de agradecimento a alguns/algumas dos/as apoiantes mais assíduos/as
nas nossas redes sociais, nomeadamente, à Marta Castro, à Patrycia
Furtado, ao Phillipe Raposo, ao Ricardo Correia, ao Ricardo Sousa
Fonseca, e à Susana Gandarela: muito obrigado, uma e outra vez, pelo
vosso precioso apoio e incentivo – saibam que fizeram toda a diferença.
ONDE HOUVER AMOR | Entende-se que o reconhecimento relacional implique dispormo-nos a conhecer o Outro por quem ele é, sem preconceitos, juízos e coerções, através de um processo que se impõe naturalmente lento, gradual, e tentativo, na sua mais irredutível singularidade. Isto implica a capacidade de aceitarmos e celebrarmos a diferença interpessoal, percebendo que a despeito dela, todos partilhamos a mesma inequívoca humanidade. Conto-me no número dos/as muitos/as que terão lido, decerto também impressionados/as, as reflexões de um texto que veio a lume pouco tempo depois da COVID-19 ensanguentar as primeiras parangonas jornalísticas, onde entre outras passagens de interesse se pode ler: “estão parados igualmente os carros topo de gama ou ferro velhos antigos simplesmente porque ninguém pode sair. Bastaram meia dúzia de dias para que o Universo estabelecesse a igualdade social que se dizia ser impossível de repor”. A reflexão do psicólogo Leonardo Morelli reforça-o com acutilância: “Chega um vírus que nos faz perceber que, num instante, podemos ser nós os discriminados, os segregados, os bloqueados na fronteira, os portadores de doenças”. Numa proposta de ressignificação positiva da crise decorrente da COVID-19, a EXPERIÊNCIA ROSA pontua que para quem nega o encontro autêntico e respeitador com o Outro, para quem vive de fintá-lo pela agressão ou pelo evitamento, a vida terá sempre o perímetro restrito de um confinamento.
NOVOS RUMOS? | E se, com efeito, o amor que nos unifica
se torna disfuncional por falta de uso, devemos trabalhá-lo ativamente, ao
invés de adotarmos uma disposição meramente contemplativa. É assim que a
EXPERIÊNCIA ROSA não só se afirma como interpelação ética, como também se
assume resposta a esse mesmo chamamento – como um ato de responsabilidade
alteritária: como um ato de responsividade diante do Outro. Uma responsividade
diferente daquela que habitualmente apresento, enquanto psicólogo clínico e da
saúde, no domínio limitado de um consultório de atendimento. Ao debruçar-me
sobre a questão, recordo como dos meus estudos em Psicologia Comunitária me
ficou de Seymour Sarason a ideia de que somos parte de uma rede de relacionamentos
de suporte mútuo mas, sobretudo, a de que temos o dever de intervir, enquanto
cidadãos e cidadãs responsáveis-respondentes, na organização do tecido
comunitário, implicando isto a capacidade de ir até onde as pessoas estão. A
disposição para acorrer a este encontro foi-se-me fazendo mais presente ao
longo dos anos, através da realização de palestras e da organização de
programas de desenvolvimento, junto da comunidade, atingindo talvez o seu auge
na adesão a manifestações sociais, campanhas e compromissos ativistas.
Possivelmente porque o meu encontro com o Outro se foi fazendo mais constante através da arte, comecei por inscrever a EXPERIÊNCIA ROSA no âmbito exclusivo da minha ocupação artística, apenas para perceber o tanto que a transcende. Muito gratamente, o término desta iniciativa parece querer sintonizar-me com uma renovada inclinação para emparelhar as preocupações clínicas individuais às preocupações sócio-comunitárias, assumindo de forma mais ativa a minha responsabilidade para amar e servir – e é essa possibilidade o fermento que hoje faz crescer o empenho na concretização dos meus próximos projetos.
Embora chegada ao fim, a EXPERIÊNCIA ROSA espera poder continuar a inspirar gestos de dádiva, no reconhecimento e celebração da nossa humanidade, sensibilizando para a importância e gratuitidade das pequenas ações quotidianas na criação e manutenção do nosso bem comum. Talvez possamos levar algum tempo a reencontrar a segurança que outrora conhecíamos, ou julgávamos conhecer. Até lá, talvez cada um/a de nós possa olhar para a sua própria vulnerabilidade e para os seus recursos, relançando-se na co-construção de uma sociedade assente na responsabilidade social, uma sociedade mais solidária e menos solitária, onde cada pessoa seja singular, mas nunca só.
O projeto poderá agora ser consultado através da página de Facebook ‘@AExperienciaRosa’ e da página de Instagram ‘@a_experiencia_rosa’, e ainda no catálogo da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.
A todos/as os/as nossos/as destinatários/as, Dr. Ricardo Rio, Presidente da Câmara de Braga, à Dra. Lídia Dias, Vereadora da Educação e da Cultura, ao Arcebispo D. Jorge Ortiga da Arquidiocese, à Dra. Fátima Soeiro da Delegação de Braga da Liga Portuguesa contra o Cancro, à Dra. Aida Alves, diretora da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, ao Dr. Ricardo Sousa, presidente da Associação Juvenil Synergia, à Dra. Isabel Silva, diretora do Museu dos Biscaínhos e do Museu D. Diogo de Sousa, à Dra. Alexandra Araújo, representante do Theatro Circo, à Dra. Manuela Machado, representante do Palácio do Raio, ao Professor Doutor Duarte Bandeira, diretor do Museu Nogueira da Silva, à Dra. Sofia Afonso, da Centésima Página, ao Paulo Garcia, gerente do espaço Barhaus, à empreendedora e rotarista Carla Sepúlveda, à psicóloga Andreia Santos, à analista comportamental e psicoterapeuta Elsa Dourado, e à Dra. Eduarda Palmeira, representante da Abandoned Pets, Associação pela Dignidade Animal S.O.S ADOPTA – um extenso obrigado por aceitarem a nossa interpelação, por darem do seu tempo, da sua compreensão, do seu conhecimento, dos seus sentimentos, e da sua hospitalidade.
Com estima,
Carlos Marinho
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