Avançar para o conteúdo principal

ENTENDER PARA SUPERAR: OS DESAFIOS DO NARCISISMO PATOLÓGICO

SOMOS TODOS/AS NARCISISTAS?

Sim! Comecemos por dizer que o que caracteriza o narcisismo é o investimento da libido na nossa própria imagemTodos/as nós possuímos uma energia vital que pode ser investida tanto nos outros, como na nossa própria imagem - a essa 'energia' chamamos de "libido". Com efeito, é impossível que pelo menos uma parcela da nossa energia vital não seja investida na nossa própria imagem, por isso dizemos que o narcisismo é uma condição básica da estrutura da subjetividade humanatransversal a todos os seres humanos

Para entendermos as "complicações narcísicas" que podem afetar o nosso comportamento, nomeadamente o que consideramos "narcisismo patológico (ou perverso)", devemos começar pelo início da vida, e entender a formação do narcisismo desde a sua raiz... 

A VIDA COMEÇA NO PARAÍSO (ou SOBRE O NARCISISMO PRIMÁRIO):

No início da vida, o bebé não percebe ainda a realidade externa, não está ainda capaz de reconhecer que para além dele existe um mundo que funciona de modo independente (está no que chamamos uma posição adualista). Tão-pouco existe ainda uma unidade comparável ao 'Eu' (ou 'Ego'). Com efeito, para que se produza o desenvolvimento do 'Eu' é necessária uma nova ação psíquica capaz de humanizar o bebé - esta humanização dá-se através dos cuidados iniciais das figuras cuidadoras. Por não ser capaz de reconhecer a diferença entre si e o mundo, por crer que ele e a figura cuidadora são a mesma unidade, o bebé vivencia temporariamente a ilusão de que ele é a única coisa que existe. Quando o bebé começa a chorar com fome, acredita que ele mesmo produz o leite que o vem saciar; quando tem frio, acredita que ele mesmo consegue produzir o calor da manta que sobre ele diligentemente colocam. Nesta fase, as suas necessidades, desejos e carências são inteiramente satisfeitas pelo Outro: alheio a isso, o bebé não tem de fazer qualquer esforço. As figuras cuidadoras não esperam que se adeque ou que seja diferente: nada se exige dele. Deixa-se que o bebé seja espontaneamente o que é. A esta fase paradisíaca chamamos de narcisismo primário (ou omnipotência primária). E sim, todos e todas passamos por ela.

A EXPULSÃO DO PARAÍSO E A SUBMISSÃO AO OUTRO (ou SOBRE O NARCISISMO SECUNDÁRIO):

A determinada altura, porém, a realidade vem expulsar-nos deste paraíso inicial: por um lado, as figuras cuidadoras deixam de estar sempre presentes (compreendem que o bebé consegue já tolerar melhor o seu afastamento, e começam elas próprias a valorizar outras solicitações pessoais); por outro, o crescimento vem convocar-nos a deixar as formas mais espontâneas e rudimentares de expressão que usávamos para sinalizar e satisfazer as nossas exigências pessoais (como o choro, o grito, e a emissão de sons desarticulados), sendo que passamos a ter de submeter as nossas necessidades às regras do modo de expressão do Outro. Somos enfim convocados a expressá-las por meio do código da língua materna. Entendemos que não é possível viver sem nos submetermos às regras do Outro

Quem manda são agora os educadores (os 'alteregos'), e descobrimos de forma amarga - através das restrições educativas, regras, punições, e ordenações -, que o nosso poder absoluto terminou. Todas estas restrições são profundamente desagradáveis para o Ego narcísico. É daqui que, no início, surgem os jogos de poder que redundam em birras, comportamentos de oposição e desafio (a criança começa a testar os limites da autoridade parental). Inconscientemente, o nosso Ego começa a negociar com os educadores para se manter no poder de forma partilhada [i.e., se o inconsciente falasse diria algo como: "Pai e mãe, já que não posso mandar a 100%, posso pelo menos mandar 70% ou 80%?"]. A negociação dá-se pelo poder da compensação: ou seja, todas as vezes que a criança percebe a censura, restrição e proibição e não puder ultrapassar esses limites, vai obedecer com o objetivo e expectativa de ser reconhecida, elogiada e premiada ["Se eu perder 30% da minha omnipotência, quero uma troca: quero recompensas, quero uma prenda, quero um elogio"]. 

Quando percebe a quebra da sua omnipotência e entende que não pode vencer estas autoridades restritivas, o Ego transita do narcisismo primário para o narcisismo secundário, com o objetivo de reaver a homeostase do prazer e do agradável. A homeostase acontece então quando o Ego recebe elogios e reconhecimento por ter obedecido (o que comumente chamamos de 'validação externa' - voltaremos a ela mais tarde no texto), e passa a procurar obedecer para continuar a recebê-los. Pela repetição e velocidade desde ciclo, vai gerar-se o que chamamos de carácter (ou seja, de valor). 

O narcisismo secundário faz parte da evolução do Ego, ao longo de toda uma vida, e vai estabelecer a estrutura da personalidade, de acordo com a compreensão, flexibilização e negociação das tendências instintivas mais arcaicas, mais emocionais, mais infantis. Quanto maior a compreensão, flexibilização e negociação, menos conflitos. 

O objetivo do ego do adulto é manifestar-se com o narcisismo secundário como predominante (por oposição ao primário). Este ponto ficará mais claro daqui para a frente.

Quando a criança entende que foi bom ter obedecido, que foi bom ter atendido à restrição dos educadores e recebe um elogio por isso, ela entra num estado de homeostase: a validação vem compensar a ferida narcísica.

Aqui se percebe a importância das figuras educadoras que podem incentivar a autoestima e confiança da criança, e muitos outros dons e sementes potenciais para se desenvolver, o que se espelhará também na juventude e idade adulta. Por outro lado, algumas figuras cuidadoras podem destruir a autoestima e criatividade da criança, quando a tratam com restrições desnecessárias e com um rigidez autoritária, quando há violência, abuso e negligência, ou também quando a tratam com excesso de proteção e privação de vivências de fracasso. Se os educadores cederem, ao invés de ajudarem a criança a tolerar a frustração, estarão mais próximos de educar crianças que no futuro tenderão a exibir a mesma atitude de cobrança perante a sociedade. Por outro lado, há pais/educadores que exigem da criança um grau de perfeição inalcançável: pais que idealizam os filhos, que esperam que os filhos sejam aquilo que eles próprios não foram, que cumpram sonhos e projetos que eles viram frustrados, levando ao desenvolvimento de comportamentos de superexigência e de perfeccionismo. Neste caso, não é já o 'EU REAL' que está manifesto: concluímos que a necessidade de ser aceite e as possíveis punições vão imprimir no comportamento do Ego uma 'personalidade ideal' para satisfazer o ambiente externo em que está inserido.  

Quando a criança se sente amada, protegida, segura, ela aprende a usar recursos internos e externos para eliminar as tensões provocadas pelas frustrações da vida: desenvolverá com o tempo um NARCISISMO SAUDÁVEL, ou seja, aquilo que se expressa no que outras abordagens teóricas chamam de autoestima ou autoconfiança. Quando a criança é rejeitada, agredida, ameaçada, abandonada, desenvolve-se com anomalias de comportamento diante das angústias, e torna-se fraca, insegura, passiva diante desses desafios, usando os mecanismos de defesa típicos do NARCISISMO PATOLÓGICO (ou PERVERSO).

A FORMAÇÃO DO 'EU (ou Ego) IDEAL':

A necessidade de VALIDAÇÃO EXTERNA é inerente à natureza humana. Do ponto de vista evolutivo, a nossa sobrevivência depende da aceitação e reconhecimento por parte dos diferentes grupos que formam a sociedade, para assim obtermos apoio e ou proteção, e nos sentirmos pertença deles. Do ponto de visto afetivo, a validação cumpre a função de nos fazer sentir amados/as, importantes, acolhidos/as e valorizados/as. Validar significa conhecerem-nos suficientemente bem, de forma a reconhecerem todos os aspectos de quem realmente somos, de como nos sentimos, do que gostamos, de quais são os nossos talentos, de quais são as nossas limitações, etc., e acolherem todas as particularidades inerentes ao nosso 'Eu' original, único e irrepetível. 

Como vimos, a criança vai obedecer com o objetivo e expectativa de ser validada, de ser reconhecida, elogiada e premiada. É por isso que começa a formar-se o que entendemos por 'EU IDEAL'. 

O 'EU IDEAL' é uma instância que remete para aquilo que gostaríamos de ter sido, aquilo que teria sido o nosso lugar no desejo e expectativas dos outros (figuras educadoras, pais, família, amigos, sociedade). 

Surge como uma versão idealizada de nós mesmos, uma versão que triunfa perfeitamente no desafio dessa submissão, que se comporta exatamente como o Outro quer, que se comporta exatamente segundo as regras do Outro, para que consigamos a troca pelo que perdemos - para que sejamos reconhecidos, aceites e valorizados no ambiente que nos interessa viver. 

Ele é formado pela identificação com a forma de agir de certas referências externas (educadores, mestres, heróis, figuras de admiração), e sua internalização. Imitamos o que sabemos poder trazer algum do necessário reconhecimento

Em resumo, o 'EU IDEAL' somos nós como objeto de expectativa para o Outro, expectativa que se for realizada pensamos ter como efeito o cessar da angústia que vem com a expulsão do paraíso. Relaciona-se, portanto, com o ambiente externo, visando o que ele nos pode oferecer; se o inconsciente falasse, estaria então a questionar-se: "como devo comportar-me para ser aceite nesta família, nesta empresa, nesta igreja, nesta sociedade?". O 'EU IDEAL' vai ter então como padrão os valores societais que supostamente ditam a experiência de poder: carreira, beleza, status, dinheiro, moda, etc.

Servindo esta fase de evolução do Ego, a necessidade de validação externa é natural e desejável. E fica conosco: findas contas, iremos sempre carecer de alguma validação por parte das pessoas que nos são significativas. O problema nasce quando a pessoa desinveste da responsabilidade sobre o seu mundo interior - tanto em termos de autoconhecimento como de autoaceitação e autocuidado -, se esvazia de subjetividade. Percebendo-se faltosa em elementos que a autovalidem, endereça aos outros o ónus da responsabilidade de preencher o que ela não consegue, e perverte este comportamento para um excesso que redunda em dependência. Por outras palavras, passa a procurar validação externa, de forma não-adaptativa, quem não se percebe a si mesmo/a passível de validação interna.

Quando vivemos presos/as às expectativas dos outros, deixámos que se imponha uma versão idealizada sobre o nosso 'EU REAL', debilitando a nossa liberdade, felicidade e bem-estar. Muitas pessoas têm dificuldades em afirmar o seu ‘EU REAL’ pelo medo de desagradar, pelo desejo de agradar, e de se fazerem corresponder às suas expectativas, mesma a expensas das suas reais necessidades, desejos e carências. Não infrequentemente, essas pessoas acabam por se sentir culpadas, frustradas, e envergonhadas quando sentem que falham o objetivo. Acreditam mesmo que são internamente defeituosas, más, indesejadas, inferiores ou inválidas, o que lhes afeta a autoestima e lhes compromete a relação com as demais pessoais. 

Ironicamente, a pessoa que se sente envergonhada de si mesma pode acabar por afastar outras pessoas e possíveis relacionamentos, sejam amorosos ou de amizade, por considerar-se inadequada e concluir, precipitadamente, que as outras pessoas também não se interessarão por ela.

A DOENÇA COMO CONFLITO ENTRE O 'EU REAL' E O 'EU IDEAL':

Como visto anteriormente, a transição para o narcisismo secundário dá-se quando percebemos que não é possível viver sem nos submetermos às regras do Outro. Sucede, porém, que as regras impostas pelo Outro não vão necessariamente ser harmónicas com as minhas necessidades e com os meus desejos espontâneos. Pode ser que eu queria determinadas coisas que, do ponto de vista das regras do jogo do Outro, não são permitidas: que podem, inclusivamente, ser erradas. Por amor a esse 'EU IDEAL', acabamos então por SUFOCAR necessidades, carências e desejos reais e espontâneos, ou seja, todos os elementos da personalidade que não se ajustam a esse 'EU IDEAL'. E derradeiramente, é isto que nos adoece. Vejamos os exemplos abaixo...

JOANA E LUÍS: DOIS ESTUDOS DE CASO

Vimos que falar de narcisismo é falarmos da relação de paixão e encantamento que temos com o nosso 'EU IDEAL'. E que prova temos desta relação? O facto de frequentemente deixarmos de fazer certas coisas, ou fazermos certas outraspara não desvirtuarmos essa imagem. Na maioria das vezes não é para desvirtuá-la aos olhos dos outros, mas sim para não desvirtuá-la aos nossos (já que a noção desse 'EU IDEAL' só existe na nossa cabeça). Os seguintes exemplos ajudar-nos-ão a compreender melhor:

Exemplo Número 1:

A Joana deseja intensamente ter relações sexuais com o Filipe. Mas fazê-lo entraria em contradição com a imagem de recato e pureza que quer ter de si mesma (o seu "EU IDEAL"). Por paixão ao "EU IDEAL" ela renuncia ao seu próprio desejo e é isto que derradeiramente destrói o seu amor próprio (o amor por si mesma). Por outras palavras, ela quer ter uma imagem de si que não corresponde àquilo que na verdade é (aquilo que o seu desejo lhe dita ser). 

Exemplo Número 2:

O Luís sempre foi conhecido, desde infância, por ser uma criança muito calma, muito pacífica: a família toda concordava e frequentemente partilhava arredor que era "menino de ouro", que não dava trabalho, que não armava confusões. Na escola era sempre tido como um exemplo correto de comportamento. Mesmo que sujeito a bullying, o Luís não reagia com agressividade: ficava na dele, e a situação passava. Ele foi construindo o seu "EU IDEAL" a partir dos traços de comportamentos que eram valorizados pelas pessoas à sua volta (nomeadamente, família e escola): naquele momento, a imagem idealizada de si mesmo era justamente a imagem que correspondia ao comportamento efetivo dele - a imagem da calma, do controlo, da passividade, da não-agressividade. 

Apesar de todos os elogios que recebia, quanto mais o tempo passava e o Luís crescia, mais ele se tornava tímido e inseguro: e menos ele gostava de si. Vivia sempre ansioso e tenso, como se sob ameaça; embora estivesse entre os melhores alunos da escola, sentia-se um fracassado, não conseguia usufruir desse status de excelência. 

Esse padrão emocional doentio foi permanecendo durante a adolescência, e na vida adulta. Aqui, outros problemas começaram a somar-se aos anteriores: o Luís sofre uma tremenda dificuldade em dizer 'não', recusar pedidos e solicitações, quando está diante de uma situação de conflito tende a fugir, e percebe que está sempre a tentar agradar os outros, evitando confrontos. Olha-se constantemente de forma pejorativa, sentindo-se inseguro e fracassado, e prejudica-se sempre na relação com os outros. 

À primeira vista, na medida em que o Luís parece não gostar muito de si mesmo, assumir-se-ia que este não seria um caso de narcisismo. No entanto, é justamente o narcisismo que o prejudica e que compromete o seu amor próprio. Recorde-se: o 'EU IDEAL' do Luís foi construído a partir da percepção e feedback que recebia das pessoas, e foi marcado pela passividade, pelo não dar trabalho aos outros, pela não-violência, a não-reação de agressividade quando outros o humilham. São estes traços que caracterizam o seu 'EU IDEAL'. Se o narcisismo é a paixão que nutrimos pelo "EU IDEAL", o Luís vai reprimir todos os elementos da sua personalidade que não se ajudam a esse ideal - vai reprimir, por exemplo, uma agressividade que é inerente a todas as pessoas. Todos/as nós temos naturalmente um gosto pelo domínio, por fazer valer o que pensamos e desejamos (claro que, para vivermos em sociedade devemos modular esse domínio, caso contrário viveríamos num estado de guerra de todos contra todos): faz parte de todos e todas nós. Mas ele precisou de reprimi-lo. Tal como a Joana, no exemplo anterior, renunciou ao seu desejo. Se o Luís não tivesse reprimido esse gosto, ele teria conseguido usufruir do status de estar entre os melhores - ele sentia-se fracassado porque sentindo-se fracassado ele estava alinhado com o seu 'EU IDEAL'. Se ele não tivesse reprimido a sua raiva e agressividade, ele teria conseguido lidar com situações de conflito, conseguiria dizer 'não', não estaria sempre a querer agradar aos outros. Foi justamente o amor exacerbado pela imagem do 'bom menino' , construído desde a infância, que levou o Luís a autodestruir-se. 

Sair do labirinto desta situação implica "escolhermos bem as nossas batalhas". Com efeito, o que se percebe destes casos é que em prol de verem saradas as suas feridas narcísicas através do amor dos outros, estas pessoas acabaram por infligir-se a elas próprias outra ferida maior - ou se afastam dos outros, acabando depois por se autodestruírem (exemplo da Joana) ou destroem o amor por si mesmas, acabando depois por afastar relações significativas com os outros (exemplo do Luís).

AS SECRETAS SAUDADES PELO QUE NUNCA FOI:

Neste momento, podemos então atualizar a nossa definição de narcisismo. Apresentamo-lo inicialmente como "o investimento da energia vital na nossa própria imagem". Mas quando aqui falamos na nossa própria imagem, não nos referimos à imagem objetiva que o espelho nos devolve, mas sim a esta imagem idealizada que construímos de nós mesmos/as e que queremos ter de nós mesmos/as.

Analisemos, porém, o significado de IDEAL: "Aquilo que só existe na imaginação; fantástico; quimérico: mundo ideal. Que possui a suprema perfeição; perfeito; beleza ideal. Relativo a ideia: que só tem existência no pensamento; imaginário".

Isto é um breve preâmbulo para assumir que estamos todos e todas formatados/as em cima de uma ilusão. O 'paraíso perdido' foi experienciado como 'real', mas na verdade nunca houve qualquer estado de omnipotência. 

O mesmo sucede com a idealização da nossa imagem, aquela que se forma para reconquistar o que supostamente perdemos: poder. Mas nunca realmente detivemos poder algum. Vamos é crescendo nesta fantasia. E ainda hoje pautamos o nosso comportamento por essa ilusão: já sabemos que o Pai-Natal não existe e que o Super-Homem não existe, mas continuamos a sonhar com uma perfeição que não poderá nunca existir. 

Reconhecê-lo, porém, não é fácil. Todos/as nós, guardamos secretamente muitas saudades desta fase inicial de omnipotência: de quando éramos aquilo que deveríamos ser, de quando não havia uma exigência para sermos de outra forma. A parte ferida em nós vai querer manter esta idealização, e vai voltar a ela sempre que nos sentirmos tão impotente como um bebé ou uma criança de colo. E para manter a idealização, o Ego tende a defender-se com um sentimento de superioridade como o orgulho, a vaidade, a prepotência, a presunção, a arrogância... para apresentar o 'idealizado' ao mundo externo. Mas como nunca será satisfeito inteiramente, o 'EU IDEAL' tem como resultado a frustração, e torna-se o pai das revoltas, das mágoas, do ressentimento, da ira, da insatisfação, da falta do perdão. Quando estes comportamentos se tornam rígidos, estamos diante da experiência de NARCISISMO PATOLÓGICO (ou PERVERSO).

O NARCISISMO PATOLÓGICO (ou PERVERSO):

Vimos já que o narcisismo é uma condição básica da estrutura da subjetividade humanatransversal a todos os seres humanos, e que está relacionado com o investimento da libido na nossa própria imagem ideal. O grau de salubridade ou patologia associado ao narcisismo vai depender da direção e quantidade de libido que investimos - em nós e/ou nos outros. 

Uma pessoa que desenvolva um funcionamento narcísico patológico desenvolverá uma imagem idealizada de si mesma e investirá essa energia quase exclusivamente em si, de forma reativa e unilateral, excluindo os demais (comportamento típico do narcisismo primário). Pessoas assim preocupam-se quase que exclusivamente consigo mesmas, não suportam abrir-se às necessidades, interesses e desejos dos outros, não fazem acordos, não negociam, tudo tem de ser como querem: comportando-se como uma criança nos primeiros anos de vida. 

Todos/as nós temos o anseio de regressar ao narcisismo primário, à época em que éramos "sua majestade, o bebé", em que o ambiente fazia tudo o que queríamos, em que nos preocupávamos apenas com os nossos interesses. Mas a maioria das pessoas aceita que não é possível voltar, que a vida em comunidade exige que sacrifiquemos o narcisismo em prol das outras pessoas, porque viver em sociedade significa isso. Os narcisistas fazem birra: não suportam que o Outro seja o Outro, que o Outro tenha os seus interesses individuais, querem que o mundo se conforme à sua vontade, que gire em torno dos seus desejos.

OS DESAFIOS DO/A CLIENTE NARCÍSICO/A:

Quando chega a consultório, a pessoa com um funcionamento narcísico patológico, está frustrada e deprimida, sente-se constantemente insatisfeita, sempre magoada, revoltada e injustiçada, sentindo que ninguém gosta dela, que ninguém a ama, ninguém reconhece o seu trabalho, punindo outros e a si mesma por não ter obtido o que esperava obter. Neste estado mental, acredita que a causa de todos os seus dissabores vem do mundo externo. Sente-se espoliada, desconsiderada, depositando toda a responsabilidade nas pessoas com quem convive, transformando a sua vida num fardo injusto e pesado.

Trata-se, claro, de uma defensividade necessária para que consiga equilibrar a falta de amadurecimento psíquico, o que lhe permite constituir, ainda que de forma ilusória, a sensação de ter uma identidade pessoal e uma integridade psíquica: a atitude prepotente e omnipotente pode esconder sentimentos reais de impotência e incapacidade; o isolamento e a megalomania podem encobrir sentimentos de inferioridade e humilhação; os episódios de ira podem mascarar a fragilidade psíquica; a atitude egoísta e o comportamento exibicionista podem estar a disfarçar a mal tolerada dependência do reconhecimento e do amor incondicional do outro.

Apesar de estas atitudes narcísicas emergirem quase que automaticamente para compensar fragilidades ou falhas no desenvolvimento do ego, também contribuem para dificultar o processo de amadurecimento e integração do ego

Pacientes submetidos a este estado acreditam que têm o direito de receber do seu ambiente tudo o que querem, como querem e quando querem. Se isto não acontece, sentem-se rejeitados/as, inferiorizados/as ou preteridos/as, e podem reagir com uma fúria incontrolável. Dominados/as pelo ódio que emerge automaticamente, fruto da frustração, podem tornar-se agressivos/as. 

Estão quase sempre com raiva e insatisfeitos/as, pois qualquer frustração é sentida como uma retaliação, uma atitude proposital, maliciosa ou negligente do meio externo, que é percebido como hostil ou maldoso; as coisas boas que lhes acontecem ou que recebem de outras pessoas, são dadas como certas, tinham o direito a elas; as coisas sentidas com negativas, por seu lado, são a prova viva da hostilidade do mundo externo. Apesar de requisitarem que todos à sua volta percebam os seus desejos e os atendam incondicionalmente, estes/as clientes são pouco capazes de ver e aceitar a necessidade, a individualidade e o desejo do Outro, porque não toleram as diferenças que naturalmente emergem nos relacionamentos humanos.

Como a diversidade e a diferença geralmente implicam conflito de interesses, geram frustração e produzem dor psíquica, estes/as clientes, que são fundamentalmente pouco tolerantes, tentam submeter o outro ao seu esquema psíquico e pulsional, tornando-se controladores/as e autoritários/as. Na sua fantasia, o Outro deve dissolver-se no seu Eu, formando uma só pessoa, eliminando magicamente os conflitos e a dor psíquica. A incapacidade de discriminar o Eu do Outro e de tolerar frustrações por não ter os seus desejos plena e imediatamente atendidos, faz com que algumas pessoas, no intuito de evitar quaisquer estímulos emocionais desagradáveis, se isolem do convívio social. Além de se isolarem, muitas vezes também são excluídas, pois são comumente percebidas como difíceis, arrogantes, egoístas e impacientes, despertando um alto grau de rejeição no seu círculo familiar, social e profissional.

A pessoa fica a maior parte do tempo voltada apenas para si mesma, não pode formar vínculos afetivos, tem uma necessidade omnipotente de triunfar, de ser superior e de colocar o Outro sob o seu controlo. Sem poder tolerar frustrações está sempre tomada pelo ódio e por sentimentos persecutórios.

Não pode relacionar-se de igual para igual com qualquer pessoa, na sua mente sempre haverá um que manda e outro que obedece, um superior e um inferior, um escravo e um senhor de escravos, um representante do bom e um representante do mau. A percepção do Outro não depende das características próprias ao Outro, mas sim da vivência da pessoa a cada momento. Se o Outro frustrar, desaparece imediatamente da mente da pessoa toda a sua bondade e ele é sentido como mau, perseguidor. Do mesmo modo, se o Outro gratifica, ele fica totalmente bom, idealizado

O NARCISISMO EM TERAPIA:

Em terapia, esta pessoa poderá, durante muito tempo, usar o processo apenas para aliviar a mente das suas angústias e o psicólogo, neste período, nem sequer é percebido como o interlocutor de um processo de desenvolvimento psíquico. Também é comum a tentativa de envolver o psicólogo numa espécie de conluio, cujo intuito inconsciente é convencê-lo e ao mesmo tempo reforçar a sua própria fantasia de que tem sido vitimizada pelo meio ambiente, com o propósito inconsciente de preservar o seu status psíquico e evitar a dor de se perceber responsável pelos seus próprios estados emocionais.

O psicólogo é, por excelência, uma figura frustrante e o/a cliente sente ódio, projeta o seu ódio e sente o psicólogo como uma má referência, sentindo-se ameaçado/a e precisando alternadamente de dominá-lo, triunfar sobre ele ou isolar-se, para escapar ao perigo que a relação terapêutica representa.

SAIR DO NARCISISMO PATOLÓGICO - UMA MEDIDA SAUDÁVEL PARA O NARCISISMO:

Como vimos, há quem se funda ao Outro, de tanto viver preso/a às suas expectativas; pessoas com muita dificuldades em afirmar o seu ‘EU REAL’ pelo medo de desagradar, pelo desejo de agradar, e de se fazerem corresponder às suas expectativas, mesma a expensas das suas reais necessidades, desejos e carências. O que estes/as clientes parece faltar é um sentido de 'SELF' / 'EU REAL', aquilo que entendemos como sendo a percepção de alguma integridade e capacidade pessoal interna que não é racional ou imposta por decisão ou força de vontade da própria pessoa ou de quem quer que seja. Trata-se de algo que só pode ser sentido desde dentro e que permite ao ser humano ter a noção de que ele tem um mundo interno próprio, de onde emergem emoções, impulsos, afetos e comportamentos que mesmo que não tenham passado pelo crivo da consciência ou pelo plano racional, são de responsabilidade do próprio sujeito, que sofre as consequências dos seus atos ou omissões. 

A pessoa com um sentido de Self torna-se capaz de discriminar entre o que surge do seu esquema mental e pulsional e o que vem do mundo externo, podendo com isto submeter-se cada vez menos às emergências indesejadas do seu mundo interno e desenvolver condições psíquicas para cuidar melhor de si mesma, construir e zelar pelos relacionamentos que estabelece. 

A apropriação de um sentido de Self é consequência de um grau de evolução psíquica, no qual as funções egóicas operam adequadamente, permitindo à pessoa lidar melhor com a angústia e a dor produzidas não só pela frustração pulsional, como também pelas dolorosas e inevitáveis imposições da realidade - limitações pessoais, fatalidades, doenças, envelhecimento e a própria finitude. Grande parte do sofrimento humana pode ser evitada quando há maior tolerância à frustração e maior percepção da diferenciação Eu-Outro.

Mas o que parece simples, não o é, porque amadurecer é um processo longo que inclui dor psíquica, e nada nos oferece um truque mágico ou um alívio imediato para supressão total da dor. Não se elimina a dor da vida, mas pode mudar-se a qualidade da dor com maior percepção e amadurecimento psíquico, trazendo grande alívio para angústias persecutórias e para a sensação de fragilidade e incapacidade.

Acreditamos  ser fundamental colaborar com o processo de amadurecimento psíquico da pessoa para que possa passar a sentir e a perceber o mundo externo e o Outro da forma mais objetiva possível. Isto é necessário para que se formem vínculos afetivos verdadeiros e para que, apesar das inúmeras frustrações e limitações que a vida humana oferece, ainda assim, possa sentir satisfação. Ao reconhecer e aceitar o facto de que estes aspectos mais dolorosos e desprazenteiros da vida existem, e sempre a acompanharão, pode descobrir que a reboque vêm também outros sentimentos gratificantes: como o amor, o companheirismo, a realização e a esperança. 

Nada cura o narcisismo como o Amor. O Amor é o que nos permite viver de uma forma menos egoísta. O estado amoroso destrói e preserva ao mesmo tempo o narcisismo, no sentido prático em que amar é sairmos de nós próprios/as, mas ajudando-nos também a sentirmo-nos bem conosco; e no sentido teórico em que o amor-próprio é transposto, e assim perdido, através da identificação projetiva, para a imagem do ser amado, onde se metamorfoseia em celebração da sua existência. 

Assim, a solução do narcisismo patológico (posicionamento assente no narcisismo primário) é conseguir uma medida mais equilibrada no investimento da libido. O mandamento "ama ao próximo como a ti mesmo/a", ou seja, amar o outro na medida em que se ama a si mesmo/a, seria uma boa caracterização da saúde psíquica em termos narcísicos. Um pessoa emocionalmente equilibrada investirá parte da sua libido nos objetos (sem chegar ao extremo de se despersonalizar), mas investe também uma boa parte em si mesma (sem chegar ao extremo de se tornar uma pessoa ensimesmada) - narcisismo secundário.

Mas para tal é necessário a pessoa sofrer a perda das ilusões e da omnipotência, e criar condições psíquicas para suportar e elaborar a dor desta ferida que se lhe abre no próprio 'Eu' ao constatar que não tem dons divinos, que nalgum momento se verá impotente, dependente e em sofrimento. Fazer o luto pelo que nunca foi, exceto na sua imaginação. E sobreviver, sentindo tanto a dor como a glória de estar viva e ser humana, podendo experimentar, sem a necessidade do escudo protetor narcísico, a vida na sua totalidade mais real. 

Sim, o anseio narcísico de nos voltarmos a sentir perfeitos/as e adequados/as faz com que passemos a vida inteira atrás de idealizações e sofrendo por nunca conseguir alcançá-las. Mas felizmente, esta correria acaba (ou pelo menos refreia) quando encontramos, pelo caminho, um psicólogo que nos ajuda a perceber que sim, que é possível vivermos sem esse anseio. Que a vida, na sua aurea mediocritas, na sua gloriosa banalidade, é o novo paraíso possível, que não fomos reduzidos à pequenez das limitações do mundo, mas sim enaltecidos a ela.

Saiba mais em consultório. 
Aqui para si, 

Com estima,
Carlos Marinho 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TUDO SOBRE FERIDAS EMOCIONAIS DE INFÂNCIA

FERIDAS EMOCIONAIS DA INFÂNCIA: O QUE SÃO E COMO NOS IMPACTAM?  A Patrícia está sempre a comparar-se aos outros. Acha-se inútil e desinteressante. Tem pouca autoconfiança e uma muito baixa autoestima, desde adolescente. Vive refém do medo de ser abandonada, apega-se em demasia aos amigos e, principalmente, ao seu parceiro. A experiência de ciúmes é constante. Assume que qualquer outra mulher é muito mais bonita e mais cativante do que ela. Não descansa enquanto não souber o que o seu parceiro faz, controla-lhe o telemóvel, persegue-lhe as colegas de trabalho, e acompanha-o em todos os movimentos. " Faço isso para que ele não me troque por outra pessoa " justifica. Ansiedade, angústia, medo e desconfiança tomam conta da sua vida há muito tempo. Mas estas emoções são apenas a ponta do iceberg, e o sintoma de um problema maior, oculto abaixo da linha de água - ali, onde em terapia encontramos as suas  feridas emocionais . [Quando cais e te magoas, podes imediatamente ver a ferid...

O DESAFIO DA (RE)CONEXÃO COM O 'SELF' [MANUAL DE BOLSO - Versão 2025]

... VAZIO? DESÂNIMO? SOLIDÃO? FALTA DE FOCO? ANGÚSTIA? ... ´ Muitas destas queixas são queixas típicas do estado de  crise da subjetividade pessoal. E o que quer isto dizer? Bem, comumente, este estado de crise decorre da falta de investimento na nossa " vida interior " . Quando esta falta de investimento leva ao afastamento e eventual  desconexão com o nosso 'Self' , debilitando-o, é gerado intenso mal-estar. Neste caso, a solução está na libertação do 'Eu reprimido' , ou seja, no processo de individuação   e  emancipação pessoal . Por outro lado, pessoas que estão nos estágios iniciais do processo de emancipação pessoal , e que percebem quão isoladas estão em relação à maioria, poderão também experimentar mal-estar sob a forma destas queixas: acontece que o que faz mover o mundo não as faz mover mais. Aos perceberem de forma mais lúcida a crise da subjetividade atual, sentem-se alienadas da cultura ao seu redor. Neste caso, a solução está na resistência às...