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A SAÍDA DA CASA DOS PAIS E O DILEMA DA DIFERENCIAÇÃO DO 'EU' EM RELAÇÃO À MASSA FAMILIAR


Não raro, as pessoas que mostram dificuldade em dar início a uma vida independente dos pais, queixam-se da falta de desenvolvimento e autonomia de pensamento, da falta de sentimento e ação, da incapacidade para enfrentar desafios e aproveitar todos os seus potenciais, do sofrimento, das dificuldades de se encontrarem no mundo, do sentimento de inutilidade e insignificância, da dificuldade em estabelecer relações duradouras.

A diferenciação proporciona a possibilidade de deixarmos a casa da família, e o mundo da infância, não só fisicamente, mas também emocionalmente. É a capacidade de existirmos como pessoa, de termos vida mental própria, de termos opiniões próprias, sentimentos, desejos, sonhos próprios, saber defendê-los e celebrá-los. Significa viver por conta, em liberdade e com o sentimento de responsabilidade. É a capacidade de reformular a relação com os pais, para que se possam desenvolver algumas normas de apoio mútuo. Talvez algumas pessoas nunca venham a sair de casa. Há quem o faça fisicamente, mas não emocionalmente: mostram-se ainda muito reativos à posição dos progenitores. As razões são variadas – mas geralmente referem-se à interferência dos pais e à maneira como esta relação é construída. São exemplos:

1] Uma relação muito próxima/simbiótica com o/a filho/s – o filho pode chegar a substituir emocionalmente a esposa ou esposo para um dos pais;

2] A falta de atenção e aceitação suficientes quando o/a filho/a começa a querer separar-se dos pais;

3] A dificuldade em deixá-los/as saírem ao mundo e reconhecer que não são já crianças, precisando de fazer as suas próprias escolhas;

4] A falta de exigências e limites claros. 

Semelhantes dinâmicas podem dar lugar a diferentes atitudes que nem sempre são verdadeiras. Algumas pessoas tendem a idealizar a família, negando as situações reais que aconteceram e a diversidade de sentimentos vividos com os pais, especialmente aqueles considerados negativos, como a raiva, a ira, a tristeza. Estes/as são, geralmente, os/as filhos/as criados/as na lealdade aos pais, sem direito a fazer objeções ou mostrar insatisfação. Têm medo de deixar as suas casas e viverem sozinhos/as por acreditarem que irão magoar os pais.

Há também pessoas que parecem independentes, mas, na realidade, depois de deixar os pais não são capazes de se relacionar com ninguém. Mantêm a aparência de autossuficiência, mas sentem extrema solidão, e têm medo da intimidade.

Existem pessoas que vivem com um sentimento de injustiça, queixando-se de forma indireta ou manifesta. Sentem que não conseguiram certas coisas dos seus pais ou do mundo, o que se percebe ser uma desculpa para a sua inércia ou impotência. Às vezes, a raiva de um dos pais que ofendeu o/a filho/a é tão grande que a inércia na vida é adotada como uma forma de represália ou vingança. Esta pessoa não consegue entender que, agindo desta maneira, está a destruir a própria vida, não a dos pais.

O processo de se diferenciarem dos pais é um desafio difícil, mas muito importante para o crescimento e a maturidade. Apesar de doloroso, fazê-lo conduz-nos a uma situação em que nos encontramos com o nosso próprio “eu” e, portanto, com a própria vida. 

FASES DE TRANSIÇÃO:

Sair de casa dos pais e ir morar sozinho é um grande passo na vida de qualquer jovem. Mas também as despesas podem ser grandes e, por isso, é preciso ponderar bem esta decisão. Os últimos anos têm sido profícuos em alterações nas dinâmicas sociais, parentais e familiares. Temos assistido a um prolongar da coabitação entre pais e filhos, com os filhos a sair de casa dos pais e a autonomizar-se muito mais tarde do que acontecia há umas décadas atrás. Tendemos, enquanto sociedade, a olhar para estes jovens como imaturos, irresponsáveis, dependentes ou até mesmo preguiçosos.

É verdade que, existem vários fatores associados a esta dinâmica de autonomização mais tardia, que começam logo na persecução dos estudos até mais tarde e na dificuldade em estabilizar economicamente. Contudo, não é menos verdade a dificuldade dos jovens atuais em conseguirem manter-se por períodos prolongados no mesmo contexto profissional, fruto, talvez, de uma ideia generalizada de que ter múltiplas experiências é bom ou de que não devem submeter-se a determinadas coisas, desvalorizando a ideia de continuidade e estabilidade. Fator de acrescento prende-se também com o custo de vida e a dificuldade em alugar/comprar casa. São tudo pesos num mesmo prato da balança que vão contribuindo para estas dinâmicas.

Contudo, desenganemo-nos se achamos que a responsabilidade é apenas dos jovens. Estes jovens são produto da sociedade e de dinâmicas parentais, as quais os foram moldando. Os pais quiserem proporcionar diferentes condições aos seus filhos, suprindo várias necessidades, o que não está incorreto. O problema ocorre a partir do momento em que isso limita a sua capacidade de autonomização. Os pais que sustentam os filhos adultos acreditam estar a assumir um ato de amor quando, na verdade, estão a prejudicar o amadurecimento dos jovens, que continuam ligados à família através do cordão umbilical financeiro e emocional, como pequenos cangurus protegidos pela bolsa marsupial dos pais. Há por isso uma pergunta que emerge e precisa ser colocada no campo da reflexão. Serão apenas os jovens a depender dos pais ou os pais também dependerão emocionalmente dos seus filhos? Será que, inconscientemente, os pais estão a impedir os filhos de partirem, através de práticas comportamentais de “retenção”, mais uma vez, de modo inconsciente?

São também estes pais que não conseguem passar férias sem os filhos, não conseguem deixar os filhos com os avós uma noite ou até umas horas para poderem ir jantar em casal. São estes pais que ajudam a comprar casas ao lado das suas e que se voluntariam para cuidar da mesma. Estaremos por isso a falar de uma dinâmica de dependência de filhos em relação a pais ou também de pais em relação a filhos? Estarão os pais com dificuldade em “deixar ir”, em olhar os filhos na sua independência e autodeterminação, bem como seres diferentes dos pais? Estaremos a usar os nossos filhos e as suas vidas para nos realizarmos?

É importante refletir estes aspetos no momento em que apontamos o dedo a uma criança ou jovem. Não são apenas eles que não querem partir, são também os pais que os não deixam partir.

Naturalmente que estar em casa dos pais é bom. Temos quem cuide de nós e por nós faça a maior parte das tarefas domésticas, sem termos de nos preocupar com pagar a renda e outras despesas. No entanto, calha a todos chegar a altura em que temos de voar do ninho. 

Aqui ficam algumas dicas para te orientares:

1. Prepara-te muito bem: As coisas são diferentes quando temos de ser nós a comprar o nosso próprio papel higiénico (verdade!). Todas as pequenas despesas que nunca considerámos por não sermos nós a cuidar delas começam a aparecer, e apercebo-nos que a renda, a luz e a água não são as únicas despesas de quem vive sozinho. Por outro lado, não ter ajuda com as tarefas domésticas implica também mais trabalho e menos tempo livre.

2. Não tenhas pressa: Antes de decidir sair de casa dos pais de um dia para o outro, o melhor a fazer é começar a aprender a ser independente sem grande pressa para depois não se apanhar um choque. Com alguns pequenos passos, como pagar renda por viver em casa dos teus pais e começares a fazer as compras para a casa, habituar-te-ás mais facilmente à tua nova vida.

3. Pede ajuda: Sair de casa dos pais não é definitivamente fácil. Ao início vai ser um choque olhar para as despesas associadas a viver sem o apoio financeiro que tinhas antes, e como tal pode ser uma excelente ideia pedires para esta ajuda continuar, mesmo que reduzida, para que possas continuar a fazer algumas poupanças sem abdicar da qualidade.

4. Faz um orçamento mensal: Pagar a renda, a conta da água, da luz, do telemóvel, ir comprar comida, e manter comida no frigorifico são despesas essenciais que nunca podem ser esquecidas. É fácil deixar o dinheiro acabar antes de chegar o final do mês, e para evitar o embaraço de tal acontecer o melhor a fazer é criar-se um orçamento mensal, onde todas estas despesas devem estar presentes, bem como todos os rendimentos. Certifica-te que o orçamento conta com todas as pequenas despesas que normalmente não costumavas ter. Podes até fazer este orçamento antes de dar o grande passo. O que farias se o teu carro avariasse? Já pensaste se o teu chefe decide cortar as horas extras? Infelizmente, estas coisas acontecem, por isso é importante ter uma reserva para momentos de emergência!

5. Aprende a cozinhar: É importante saberes cozinhar para não teres de depender de comida pouco saudável e de restaurantes quando saíres de casa dos pais. Começa por aprender algumas receitas básicas que não precisem de muitos ingredientes, e vai aumentando o teu portfólio de receitas com o passar do tempo. Pedir as tuas favoritas emprestadas aos pais também pode ser uma excelente ideia – nada como uma boa receita de família.

6. Encontra um lugar para morares: Esta é a tua prioridade número um para saíres de casa dos pais. Para encontrares uma casa, existem diversos fatores que devem ser levados em conta. Primeiro, a escolha do local: queres morar perto do trabalho? Perto do teu clube ou dos teus amigos? Descobre o que for mais importante. A seguir, escolhe que tipo de residência é melhor: apartamento, casa, dividir espaço com mais alguém? Esta última opção é boa para pessoas com um orçamento limitado. Se tiveres um amigo que precise de um lugar para morar, esta pode ser a situação ideal. Se fores procurar alguém de outra maneira, antes de mais nada, obtém informações sobre a pessoa e garante a tua segurança. Uma forma de encontrares alguém para dividir a casa é usando os teus contatos. Faz um post anunciando nas suas redes sociais e manda e-mails para os teus colegas de trabalho a perguntar se conhecem alguém interessado. Também é possível usares a internet para o efeito: investe em sites de boa reputação e sê bastante específico ao descreveres o que procuras. Já encontraste? Esclarece com o proprietário quais são as tuas responsabilidades antes de fechares o contrato. Depois de tudo assinado, entra em contato com fornecedores de energia, água, internet e gás e passa as contas para o teu nome. Não deixes de reativar ou instalar tudo antes de te mudares. Talvez precises de pagar alguma conta pendente ou a instalação se fores um cliente novo – inclui esse valor no orçamento.

7. Prepara-te emocionalmente: Se fores morar sozinho/a primeira vez é muito possível que fiques um pouco (muito?) nervoso/a, o que é perfeitamente normal! Antes da mudança, pensa em tudo o que precisas para te sentires seguro/a. Seria útil conhecer os vizinhos? Já pesquisaste as taxas de criminalidade e violência do novo bairro? Faz tudo o que for preciso para teres uma sensação maior de segurança. Morar sozinho/a pode também ser uma experiência solitária. Antes de te mudares, investe numa boa rede de suporte apoio. Convida alguns amigos para uma festa de inauguração da casa ou para uma noite da pizza (quem não?)! Combina com os teus pais uma chamada de boa noite. Faz o que for preciso para te sentires confortável e evitares a solidão.

8. Comemora a tua independência: Aproveita! Embora toda a mudança seja assustadora, pensa em todos os benefícios que daí poderás extrair! Diz-se que conquistar a nossa liberdade não é nada de mais. O verdadeiro desafio é saber o que fazer com ela. Preparado/a? 

Sabe mais em consultório.
Sempre Aqui para ti.

Com estima,
Carlos Marinho


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