No cenário de uma sociedade cada vez mais individualista, onde menos amor parecemos estar capazes de dar ao Outro, a mais transversal a todos os casos que acompanho, e aquela que mais flagrantemente se revela ainda que nem sempre por expressa declaração, é a necessidade – a inescapável necessidade – de ser-se amado/a tal e qual como se é. Cada pessoa que ajude é, em si mesma, uma saudável declaração de dependência, e as suas queixas são sempre as de fios relacionais ou demasiado apertados ou demasiado lassos.
A ideia da nossa coexistência pressupõe que esta se desenvolva e realize no mundo, pelo que o próprio sentido existencial se torna dependente da chamada do Outro. Entende-se que o Outro não carregue a necessidade de formular o seu pedido de modo explícito, pois que a sua presença é per si uma exigência de reconhecimento, uma chamada que nos dirige, um apelo à nossa responsabilidade. Se, acto contínuo, a nossa existência se torna uma aceitação ou recusa do Outro, é em comunhão com o Outro que nos tornamos capazes de escolher ou recusar o encontro. Assim, a certeza do Outro que se impõe por si mesmo é dupla: por um lado afeta a sua existência como ser que se revela e se dá a conhecer independentemente da inteligência e, por outro lado, afeta o carácter fundamentalmente ético da existência, mediante o qual tudo o que se deve fazer para realizar a existência está ligado ao reconhecimento do Outro, isto é, a ser alguém para o Outro.
(não. no princípio não era o eu. era o outro. encontro anterior a toda a imemorial criação, não-violento por natureza, dois pólos equivalentes constituindo-se em perfeita reciprocidade, nenhum dependente ou submetido ao outro. era a luz rubra do seu quarto-escuro de revelações. esta é toda a espontaneidade da relação, imediatamente presente, sem intermediários ou raciocínios, um banho de paragem, um processamento lento de emulsões: e eu a acordar do escuro, negativo fotográfico da sua divergência de mim, num desvelar de contornos cada vez mais vincados, cada vez mais conscientes. a ti, tu-outro, negativo do que sou, a ti de quem me diferencio no interior do pertencer a algo, a ti tudo te devo no que trago de único. irmão, amigo, amante, pela inefável doçura do amor afetivo, amor maior, amor divino, por esse solutio químico de entrega, de participação mística, de unus mundus, de contacto com o numinoso, pela inquietude que me lança no prazer da minha grandeza interior, pelo tumulto soluçado das paixões desarrazoadas, pela beleza, essa tontura de vertigem, perigosa obsessão, pelo desejo que me estremece e me vence. a nós, humanos das invisíveis veias umbilicais, rubras de desejo, fios do nosso comércio afetivo, entrançado de ponto a ponto, bordando-nos à trama da existência)
Mas o pensamento lógico-filosófico voltado para si mesmo, em que ontologicamente o que prevalece é o ser enquanto ser, quer o Outro relegado ao esquecimento, daí decorrendo toda a violência contra si praticada nos anais da história ocidental. A antropologia dominada pelo eu logocêntrico revela uma tendência para reduzir toda a realidade à razão explicativa. Segundo uma abordagem descartiana, conhecer a realidade significa reduzir todas as coisas à mesma unidade do sistema racional pensado pelo Eu, pelo que tudo o que é estranho – o Outro – tem de ser reduzido à mesma realidade racional. Esta interpretação do ser está dominada pela ideia de afirmação de si mesmo, utilizando os outros como meios para a sua realização.
(onde dói? aqui – justamente aqui, onde os teus Ocidentes mais alto exaltam e glorificam o teu eu soberano, o eu logocêntrico, esse de onde te não descentras nunca, na desconsideração das diferenças que te separam de mim, o eu dos sistemas que moves e em quartéis-generais de medo manténs para tudo dominares, tudo explorares, tudo destruíres, o dos egoísmos que causam e justificam a violência contra o outro, o das guerras e das colonizações, o eu da progressiva e sistemática anulação do amor que trago ao peito – para ti, e para ti somente, maduro inteiro, de uma beleza própria, o susto e a surpresa além dos vértices da minha redundância de eu, no choque da curva para o imprevisto, crescendo de oitavas da minha voz mais íntima)
Considerando que a biografia subjectiva individual não é passível de se destrinçar das condições sociais, históricas e culturais que a contextualizam, é legítimo afirmar que as novas formas de subjetividade perturbada podem ser compreendidas em função dos emergentes valores de autoexpressão. Estes parecem conduzir a um novo tipo de sociedade humana cada vez mais centrada no umbiguismo pessoal, sobretudo com o monopólio do capitalismo em crescimento.
Cada vez mais, o sentido de valorização pessoal do ser radica não no valor das suas capacidades (e no uso que lhes pode dar), mas num parâmetro imposto desde o exterior (fora, portanto, do seu controlo) que lhes regula o valor em função de um (a)preço de mercado e da capacidade de atrair a atenção e investimento dos demais. Esta ideia leva, consequentemente, à sensação de impotência e de insegurança que propendem a debilitar o eu individual. Mercadologicamente orientado, o homem eclipsa-se do que tenha de próprio e ao alienar-se do próprio si-mesmo, automatiza-se no processo de conformismo à coletividade. Neste sentido, à medida que se lhe substitui um espírito de manipulação e instrumentalidade, também o relacionamento interpessoal sofre a perda do carácter direto e humano.
(onde dói? aqui – na lonjura do ostracismo a que me votas, para onde me eclipsas de próprio e me usurpas a dignidade, aqui onde se vem desfalcar a minha economia de sujeito, para onde não vês esta boca de milho quente esperando teus lábios alegres para a desfolhada, onde não sabes admirar-me além-carne, névoa que cultivo, irrequieta de desejo, e por entre um ruidoso espetáculo de mesquinhice e jactâncias, ao serviço de narcísicos desígnios, nunca fim em mim mesmo, me manipulas e me objetalizas)
Enfim o ser adoece quando o seu projeto se desvia da intenção originária, quando a realidade histórica se desvia ou afasta do projeto existencial. Bloqueado no seu desenvolvimento, o indivíduo vive em função de uma identidade que já não corresponde ao aqui e agora e cada vez mais afastado tanto da sua possibilidade de autoafirmação como da de sentir a existência como realidade, vê-se destituído da capacidade de se projetar no devir. No arrasto desta alienação face ao Eu, a atividade humana dispersa-se na sôfrega busca de um lucro externo que possa compensar o vazio interior e na perseguição de objetivos crescentemente irrealizáveis de riqueza, segurança e felicidade, acabando por (a)creditar o sintoma patológico como uma identidade substitutiva do eu em que está incapaz de se centrar – desta forma, o comportamento sintomático torna-se uma identidade patológica que se contrapõe ao enfraquecimento da sua identidade ontológica.
Quem não é capaz de desejar convictamente aquilo em que crê, porque de per si o desejo criaria as premissas de uma acção não-conformista, descobre no sintoma um álibi para a sua passividade e para o seu medo, por onde poderá canalizar os seus conflitos e encaminhar o terror do seu desnorteio. Compensatoriamente, esta cadência neurótica manifesta-se em comportamentos vegetativos, niilistas, no envolvimento compulsivo em atividades e no preocupante fenómeno da solidão.
Por seu turno, a acelerada velocidade do ritmo de vida, no entanto, encaminha o ser ao preferencial interesse sobre um estar-a-par ao invés da compreensão profunda e significativa, marcada, ato contínuo, pela passividade na gestão e resolução dos conflitos pessoais e sociais, e pela perpetuação do seu constante agravo. a exterioridade e a exibição tornam-se facilmente mais importantes do que a história e o projeto existencial como procura de significado para a existência, despoletando um sentimento de ausência de sentido, o vazio existencial no qual o indivíduo vive sem direção e sem expectativas.
(onde dói? aqui – onde corres demasiado, vazio abrindo vazio, na necessidade ardente de te fazeres corresponder às exigências dessa tão exaltada idealização de eu, onde te vejo achatares o teu sismógrafo cardíaco por sob o pesado imperativo de agradares aos demais, reduzindo o mundo à extensão das tuas gratificantes e frustrantes fantasias, esbatendo a distinção entre o real e o imaginário, querendo tudo agora, intolerante à espera, à paciência, à natureza gradual e tentativa do desejo).
Dúvidas? Sinta-se à vontade para expô-las.
Com estima,
Carlos Marinho
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